Testemunhamos casos de guerras, violências, feminicídios e racismo diariamente. Em quase todos eles, inúmeras vozes nas redes sociais prontamente assumem posicionamentos com verdades absolutas a favor ou contra o fato em questão, de forma pouco embasada em dados e, muitas vezes, difundindo fake news.
Esse fenômeno não é apenas brasileiro, mas aqui ele veio à tona especialmente com a eleição de Jair Bolsonaro, quando vimos um país que se reconheceu mais conservador porque emergiu também portando armas e negando a mudança climática. Uma das consequências desse Brasil dividido é que todos os temas geram polêmicas, das enchentes no Rio Grande do Sul ao show da Madonna —para nos atermos a assuntos de momento, causando enorme cansaço e desgaste na sociedade em geral.
Felipe Nunes, em “Biografia do Abismo”, afirma que estamos num país calcificado na medida em que nossas discussões, gostos, amigos e festas estão classificados sob o eixo ideológico de uma visão de mundo. E é nesse país dividido e, talvez, majoritariamente conservador nos costumes e crenças, que me pergunto inúmeras vezes: como podemos ser tão solidários nos casos emergenciais das catástrofes como a que estamos assistindo diariamente no Sul, assim como fomos durante a pandemia, e, ao mesmo tempo, sermos uma sociedade tão indiferente às violências ocorridas contra os direitos das mulheres, das pessoas negras, da comunidade LGBTQIA+, da população em situação de rua e pobre?
Sem dúvida, o fato de que, nos momentos de catástrofes, as pessoas reconhecem as várias formas de doação e ação para fazer a diferença de forma imediata traz satisfação e sensação de fraternidade, que mobiliza e engaja.
Análises sociológicas e pesquisas de opinião tentam elucidar esse fenômeno da desconexão da maioria dos brasileiros com a dura realidade da nossa sociedade, por meio de diferentes explicações. Uma delas é o fato de sermos muito individualistas, personalistas, um país com baixo nível de confiança na sociedade de cidadania. Por outro lado, estudos têm apontado uma maior movimentação nas ações solidárias individuais no Brasil e também um aumento das doações nas organizações da sociedade civil.
Segundo a terceira edição da Pesquisa Doação Brasil, iniciativa do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social e realizada pela Ipsos, em 2022 84% dos brasileiros adultos e com rendimento familiar superior a um salário mínimo fizeram ao menos um tipo de doação (dinheiro, bens ou tempo). Dois anos antes, o percentual era 66%. O valor médio dos recursos doados também passou de R$ 200, em 2020, para R$ 300 em 2022.
A construção de laços de confiança é a base para uma sociedade mais solidária, mais respeitosa, que reconhece os direitos de cada um e, por isso, mais democrática. Não basta fazermos lindas campanhas na mídia ou experienciarmos um show da Madonna nos convocando a não ter medo de sonhar.
A meu ver, por trás da naturalização das violências estão as nossas enormes desigualdades sociais, que corroem e esgarçam o tecido social, impedindo uma maior coesão e criação de vínculos.
É urgente que possamos refletir sobre como enfrentar as desigualdades sociais brasileiras por meio de políticas públicas estruturantes e com legislação de reforma tributária progressiva e, ao mesmo tempo, com ações duradouras de filantropia e solidariedade para todo o Brasil. As fundações e institutos podem e devem arriscar mais na direção de apoios a projetos mais estruturantes e de territórios que apoiem a infraestrutura e as populações periféricas. Precisamos mudar a realidade das favelas e periferias.
É preciso expandir o senso de colaboração das emergências, como no caso do Rio Grande do Sul, para ações de mudança planejadas e compartilhadas coletivamente. Cidadania não é discurso: é ação.