O silêncio da memória – por Denise Rollemberg

O Museu Jean Moulin, de Paris, em comemoração aos 70 anos da sua morte, inaugurou em abril uma exposição que ficará aberta ao público ao longo de todo o ano, até dezembro de 2013. Moulin é o grande herói da chamada Resistência interior aos ocupantes nazistas da França durante a II Guerra Mundial, após a derrota do país para a Alemanha. Capturado, em 1943, pela Gestapo, o resistente de primeira hora não aguentou as torturas sofridas, morrendo em seguida. O ex-prefeito de Chartres, membro do Partido Radical Socialista, pequena dissidência do PS, recebera do general Charles de Gaulle, refugiado em Londres, a tarefa que parecia impossível de unificar os diferentes movimentos, organizações e partidos que lutavam contra o inimigo, nas fronteiras do país literalmente fragmentado, sem qualquer coordenação entre si. Sob o pseudônimo de Rex, nome da missão, Jean Moulin conseguiu.Com a Libertação, em 1944, De Gaulle consagrou-se o herói dos franceses; Moulin, mal conhecido nesse momento, consagrou-se mais tarde. O simbólico sepultamento dos seus restos mortais no Panthéon, monumento no qual se imortalizam os “grandes homens da Pátria”, em 1964, tornou-se o marco na construção do mito. A cerimônia mobilizou o país e contou com a presença das maiores autoridades, a começar pelo general de Gaulle, e eternizou-se no discurso emocionado de André Malreaux. A Pátria reconhecida, conhecia Moulin. Por toda a França, as homenagens a ele se multiplicam em memoriais, museus, estátuas, bustos, nomes de logradouros públicos, escolas, universidades.De Gaulle e Moulin, as personificações da França resistente. O militar e o civil; a resistência exterior e a resistência interior; um viveu para ver vitória, o outro, sucumbiu em sacrifício. Juntos, a reconstrução física e moral do país.

No cartaz da exposição temporária, espalhado pela cidade, a promessa de coleções inéditas e o sugestivo título: Rédecouvrir Jean Moulin. A primeira vista, é inevitável pensar: que documentação teria permanecido ignorada nessas décadas, considerando a fixação dos franceses pela memória da Resistência e de seus combatentes?

Da farta documentação, emerge o lado humano, pessoal, do herói. Cartas, fotos, desenhos e bilhetes dos tempos de menino. Vemos Moulin em movimento, ouvimos sua voz. Num fragmento de filme, o homem da administração fazendo um breve discurso em homenagem a alguém. Em outro, se divertindo com o amigo de infância, Marcel Bernard, ambos jovens, numa praia no verão, depois, no inverno, construindo um boneco de neve, atirando bolas de neve um no outro. A dedicação aos pais, irmãos, primas. O carinho pelos amigos. Os passeios de bicicleta, o esqui. A vista que tinha da casa de campo. O amor pelas artes. Sob o pseudônimo de Romanin, conhecemos o talentoso artista: pintor, desenhista, cartunista, chargista. Romanin veio a ser o nome da galeria de arte que abriu em Nice para dar cobertura a ações clandestinas. Ali, o artista e o combatente. Romanin e Rex. Quem iria supor que um e outro eram o mesmo?

Numa única foto, vemos Moulin e a esposa. Na legenda, a informação: criada em Paris, ela jamais se acostumara com a vida na província; as ausências constantes levaram o marido a solicitar o divórcio, alegando abandono do lar.

Embora seja o lado humano do herói a abordagem escolhida na rememoração da efeméride, a sexualidade de Moulin é discretamente contornada. Mas o tipo de documentação trazido ao público acaba impondo o assunto, que às vezes parece se debater com as legendas e, sobretudo, com a sua própria ausência. Assim, é justamente esse vazio que salta aos olhos, como se o espectador, meio desconfortável, visse o que não era para ser visto, ouvisse o que não foi dito. Em outras palavras, Rédecouvrir Jean Moulin encobre mais uma vez o tabu e, por isso mesmo, o revela: a homossexualidade de Moulin. Do herói. Do mito. O indizível.

Uma das maneiras que o inimigo usava para desmoralizar os resistentes, entre outras, era caracterizá-los como homossexuais. Nos anos de Guerra, nos anos 40, foi assim. A suposta ofensa subentendia a coragem como atributo de homem, macho, heterossexual. Aos homossexuais a covardia. Evidentemente, entre colaboracionistas havia homo e heterossexuais, bem como entre os resistentes. A história, a realidade dos fatos desconstroi o preconceito de uma época. Em 2009, Daniel Cordier, um dos mais celebrados biógrafos de Jean Moulin, assumiu publicamente a sua – dele, Cordier – homossexualidade. Ele foi o jovem secretário de Moulin na luta clandestina da resistência interna, o homem de confiança, que o acompanhou em sua missão. Enfrentou o inimigo nazista e colaboracionista, arriscando a vida, arriscando-se à tortura. Nos três volumes do livro, o encantamento pelo homem que conheceu de perto e a discrição a respeito da sua vida privada.

Na época, falava-se da França de pé para referir-se à França resistente. Em oposição, França deitada aludia à França colaboracionista. Quando da Libertação, em 1944, o país, em euforia, conviveu com o breve e terrível processo da Depuração: a perseguição e o justiçamento daqueles que teriam se relacionado com o inimigo alemão ou colaboracionista. As mulheres foram o alvo principal, tendo suas cabeças raspadas para estigmatizar aquelas que supostamente haviam se deitado com o inimigo. As mulheres de cabeças raspadas, símbolo da França deitada. Nesse episódio, a sexualidade e o preconceito se encontraram. Contra as mulheres.

Se Jean Moulin era ou não homossexual não é a questão – e , aliás, quem poderia atestá-lo? Qual é o interesse em sabê-lo? -, mas é o silêncio a esse respeito que é. A impossibilidade de sequer tocar no assunto, ainda hoje, mesmo numa exposição focada na vida privada. A impossibilidade de pensar que talvez o mito fosse homossexual. Enfim, a impossibilidade de se ter um herói nacional, da França de pé, homossexual. Romper esse silêncio, redescobrindo preconceitos passados e presentes, talvez fosse a melhor maneira de homenagear Jean Moulin.

 

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Fonte: MamaPress

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