A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

No Brasil, existe um expressivo contraste entre a cor da população e a das pessoas que aparecem na televisão. Enquanto os brasileiros são majoritariamente negros, a imagem propagada por esse veículo de comunicação e por outras mídias é a de um país essencialmente branco.

Além da representatividade, outra característica relevante se refere ao viés nos papéis assumidos entre os grupos raciais. De um lado, os brancos costumam aparecer com traços positivos e representar um ideal de beleza, prosperidade e superioridade. De outro lado, a TV tende a reforçar estereótipos negativos da população negra e apresentar esse grupo em papéis de subordinação e inferioridade.

A representatividade e o viés nos papéis assumidos apresentam significativo potencial de afetar a percepção racial da população e, consequentemente, impactar a dinâmica social. A recorrente propaganda e a promoção da imagem branca podem afetar o imaginário coletivo, fazendo com que os indivíduos passem a acreditar, de forma inconsciente ou não, que características da fisionomia branca estão associadas a um maior valor intrínseco.

Nos EUA, uma pesquisa da Children Now revelou que as crianças e adolescentes de todas as raças associam características positivas aos personagens caucasianos na TV e negativas aos latinos e afro-americanos (“A Different World: Children’s Perceptions of Race and Class in Media”, 1998).

Além de moldar a visão da sociedade em relação às características físicas, a TV representa uma das instituições sociais com expressivo potencial de reforçar estereótipos.

Pesquisadores da Universidade de Illinois realizaram um experimento em que manipularam apenas a imagem da raça do suspeito em uma reportagem de crime violento na TV. Como resultado, descobriram que os estereótipos raciais da população negra são ativados com significativa facilidade por meio da TV (“The intersection of race and crime in television news stories: An experimental study”, 1996).

Os participantes brancos eram 
propensos a ver o suspeito negro como mais culpado, mais merecedor de punição e com maior probabilidade de cometer violência futura do que o branco retratado de forma semelhante.

Assim, a massiva “publicidade” da fisionomia branca afeta as preferências e, consequentemente, o comportamento.

Na minha tese de doutorado, explorei a variação no tempo da expansão do sinal da Rede Globo nos municípios brasileiros entre 1980 e 2000. Com isso, encontrei evidência sugerindo que a emissora aumentou a probabilidade de os pais declararem seus filhos como brancos no censo demográfico (“Fecundidade, Identificação Racial e Desigualdade”, 2020).

Nesse contexto, resta a seguinte reflexão: a arte imita a vida ou a vida imita a arte?

A TV funciona como um instrumento que tende a reproduzir e a naturalizar o viés racial enraizado na sociedade. Ao mesmo tempo, ajuda a difundir uma valorização da imagem branca.

Esse mecanismo se inicia com a seleção do que vai ser projetado na tela. Nesse âmbito, a baixa representatividade negra e a dicotomia dos papéis assumidos entre os grupos raciais são meramente um reflexo da consciência racial e social brasileira.

Entretanto, a mídia normaliza implicitamente uma narrativa de superioridade racial. Dessa forma, a recorrente propaganda da fisionomia branca será referência na formação de crenças e valores.

Consequentemente, esse veículo tende a afetar a percepção que a sociedade tem em relação à raça, influenciando de forma negativa como os negros se veem e são vistos.

Por sua vez, isso representa só um dentre vários outros custos que a população negra paga diariamente em uma sociedade estratificada e segregada racialmente.

Michael França
Doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo; foi visiting scholar na Universidade Columbia e é pesquisador do Insper

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