A criação literária como forma de resistência de mulheres negras

Pesquisa apresentada em artigo se baseou em depoimentos de escritoras negras contemporâneas de língua portuguesa

Por Margareth Artur Do Jornal Da USP

Foto de uma mulher escrevendo em um livro
As escritoras negras “tiveram ainda de enfrentar a recusa do gosto pautado numa estética literária branca e uma cultura europeizada” – Foto: rawpixel via Pixabay / CC0

A revista Crioula nos traz, no artigo de Ianá Souza Pereira, um tema pouco conhecido: uma reflexão sobre a criação literária de escritoras negras no contexto das literaturas de língua portuguesa. A partir do depoimento e da análise de obras literárias de escritoras negras, Pereira aborda a escrita como a ação política e a resistência dessas mulheres, “que agem política e ideologicamente para descolonizar a história e as mentes de leitores, movimentando o espaço literário e seu discurso hegemônico”.

Estudando quatro escritoras negras contemporâneas e de língua portuguesa, as brasileiras Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, e as moçambicanas Lília Momplé e Paulina Chiziane, o artigo põe em pauta o contexto político, cultural e histórico em que se observa a pobreza, a condição dos negros, a submissão da mulher, o racismo e o fato de mulheres negras se sentirem e serem tratadas como objeto, na medida em que seus corpos são hipersexualizados e superexpostos nas mídias de hoje.

Aqui se cita Virginia Woolf, escritora americana que questionava a dificuldade da produção literária feminina em um mundo dominado pelos homens, mas, na realidade, para as escritoras negras os entraves são maiores: “Surgem aí os obstáculos levantados pelas próprias escritoras depoentes sobre a condição dos negros em sociedades dominadas por brancos  que arquitetam, na verdade, os mecanismos materiais, econômicos, sociais e políticos do mundo atual”.

Mulheres negras, nas sociedades capitalistas, são as mais oprimidas e inferiorizadas socialmente. Aí é gerado um círculo vicioso: mulheres brancas e homens negros, a depender da situação, agem como opressores, pois, de acordo com Bell Kooks, autora e ativista femininista, “os homens negros podem ser golpeados pelo racismo e pela classe social, mas seu gênero lhes permite oprimir e explorar mulheres.

As mulheres brancas, mesmo pobres, têm os privilégios da branquitude e podem atuar como opressoras de pessoas negras, mas à mulher negra não resta outra forma que não a de explorada”.

As mulheres negras dos contos de Conceição Evaristo são: “insubmissas […], desobedientes, inconformadas e independentes” – Foto: StockSnap via Pixabay / CC0
As escritoras negras, além de terem de enfrentar o racismo, “tiveram ainda de enfrentar a recusa do gosto pautado numa estética literária branca e uma cultura europeizada”, mas nem por isso esmoreceram, pois são “mulheres que se fizeram livres para e com a escrita”. Essa é a força de mulheres que sempre sofreram a privação, a rigidez de executarem trabalhos físicos pesados, muito mal pagos, “impostos pelo simples fato de serem mulheres e negras, que alimentam, cuidam e limpam” as casas e famílias de outros e ainda de suas próprias.

“Ler essas mulheres e estudar seus textos literários é garantir-lhes o direito básico de existirem como mulheres e como escritoras”, salienta Pereira.

As mulheres negras dos contos de Conceição Evaristo são: “insubmissas […], desobedientes, inconformadas e independentes. Já o livro Malungos e Milongas, de Esmeralda Ribeiro, tem como objetivo “fazer ressoar entre negros e não negros a importância da solidariedade entre seres humanos”. Nos contos de Lilia Momplé estão presentes o colonialismo na África e a miséria de sua população.

A obra As Andorinhas, de Paulina Chiziane, “aproxima o leitor do passado soterrado do colonialismo em África e da luta por sua libertação”, e é um convite para se pensar “sobre acontecimentos que favoreceram todos os senhores herdeiros das injustiças da história”.

Concluindo, enfatiza-se a importância de conhecermos a literatura de mulheres negras para se constatar que ela é um antídoto contra a rejeição e a marginalidade instituídas pela “literatura ‘oficial’”. Essas mulheres escrevem assumindo-se “protagonistas” contra os estereótipos determinados para o corpo feminino negro, valorizando postura e pensamentos críticos diante da realidade herdada, e isso, sem dúvida, mostra “o posicionamento político das escritoras”.

PEREIRA, I. Contos, depoimentos e memórias de escritoras negras brasileiras e moçambicanas. Revista Crioula, v. 1, n. 22, p. 14-38, 2018. ISSN: 1981-7169. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1981-7196.crioula.2018.15325.

Disponível em: http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/153258. Acesso em: 08 jan. 2019.

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