Paulo Lins: “A cultura é que coloca o negro dentro do Brasil como nação”

O escritor brasileiro Paulo Lins esteve no país pela primeira vez, mês passado. Durante a visita, Lins cedeu uma entrevista, na qual explica como começou a escrever. Mais do que isso, o escritor fala sobre a condição do negro no Brasil, da importância da cultura para a sua integração na nação brasileira e do que julga ser liberdade: “Eu acho que liberdade seria você respeitar a sua prisão”.

Por José dos Remédios, do O País 

Paulo Lins, há uma resposta para a pergunta por que escreve?

Primeiro, comecei como brincadeira, porque, quando era criança, ouvia muitas estórias dos meus pais e tios, numa altura em que não tínhamos televisão, esse aparelho era muito restrito a uma classe social com dinheiro. Então, à noite, os mais velhos contavam estórias para os mais novos. E eu tentava reescrever as estórias que ouvia. Era uma brincadeira que fazia durante o dia. Quando a noite chegasse, lia a mesma estória para as pessoas que me tinham contado. Depois passou para necessidade. Quando tivesse um sofrimento ou alegria extrema, escrevia para botar para fora, como terapia. A seguir passou para o acto político, porque escrever também é um acto político-social. Comecei a escrever juntando estes três elementos: a brincadeira, a necessidade e a questão política. Depois disso, a escrita passou a ser minha profissão. O meu ofício é escrever.

 

Lendo seus livros, a pergunta impõe-se: é daqueles autores que melhor acontece quando há conflitos?

Os conflitos são bastantes estimulantes. É deles que a gente vive, para os resolver depois. Na verdade, a gente vive resolvendo conflitos. E, na literatura, podemos resolver o conflito socialmente, mas, quando os descrevemos, botamos tudo para fora. E comigo é assim.

 

No seu livro, Desde que o samba é samba, procura resgatar momentos da cultura brasileira. Esses momentos estavam perdidos?

Há muita coisa da cultura africana no Brasil que não foi comentado nem na História, na Antropologia e em nenhuma ciência, muito menos na literatura. Para o negro fazer parte da cultura da nação do Brasil pós-escravidão foi muita luta, muita guerra e houve muita morte por isso. As pessoas falam muito sobre o samba, dança com matriz africana, mas ninguém sabe como aconteceu, quantas pessoas morreram para implementar a cultura. O negro devia entrar para a sociedade brasileira através do trabalho, da produção, mas consegue entrar por via da cultura que tentaram aniquilar. A cultura é que nos coloca dentro do Brasil como nação.

 

Como foi lidar com os resultados das pesquisas sobre a inserção do negro durante a escrita do livro?

A pesquisa é mais difícil do que escrever, mas eu tinha muitos relatos. O samba foi criado há 100 anos, eu tenho 60, consegui conviver com alguns inventores desse ritmo. A pesquisa foi imensa, conversei com muitos sambistas e Martinho da Vila foi uma das pessoas que me deu muita dica para escrever. O que não tinha era o registo da fala da época (1928, 1929, 1930 e 1931), não tinha a linguagem coloquial. Aí tive de inventar palavras na linguagem de rua. Só tinha a linguagem culta. Tive de buscar palavras possíveis dentro da língua portuguesa.

 

O desafio foi ficcionar o samba apenas…

Não necessariamente. Nasci no mesmo lugar onde nasceu o samba. Tenho vantagem de ter convivido com alguns dos personagens que eu escrevo. Eu vi o Ismael Silva, que é o grande inventor do samba; Noel Rosa eu peguei um pouquinho antes dele morrer; depois participei na escola de samba. A minha vida é no samba e no samba eu me criei.

 

Quando começa os seus livros?

Quando não dá mais para não fazer nada. O começo é muito difícil. O começo e o fim. Quando a gente vai escrever um roteiro para um filme, trabalha com muitas pessoas, mas nunca a estória é sua, nunca é você que produziu aquela estória. Sempre é uma encomenda de uma pessoa que quer fazer o filme. Agora, o livro Desde que o samba é samba pensei nele antes de Cidade de Deus. Depois de Cidade de Deus, comecei a escrever Desde que o samba é samba, que é um projecto meu. A Cidade de Deus não é um projecto meu. É um projecto que começa na universidade dentro de um projecto de pesquisa antropológica. Eu era assistente de pesquisa e comecei a trabalhar nela entrevistando pessoas ligadas à criminalidade no bairro onde me criei. Aí surgiu a ideia de escrever alguma coisa sobre aquilo que estava pesquisando. E a minha pesquisa começa com os livros, que é mais fácil, basta comprar numa livraria. Depois vou para os museus, institutos, e, por fim, vou ter com as pessoas que viveram ou que têm algum conhecimento sobre o que estou produzindo. Finalizadas essas três fases, com pesquisa pronta, perfeita para mim, começo a escrever.

 

É um autor comprometido com a liberdade. Como pensa na liberdade num mundo cheio de tantos preconceitos?

É difícil! Na verdade, a liberdade é uma coisa de ficção, não existe.

 

É utópico?

É utópico. A gente está preso na língua, para começar, porque a própria língua é uma prisão. A liberdade que eu penso, hoje em dia, é tolerância. Não precisamos que uma pessoa mate outra porque é de religião ou raça diferente. Eu acho que liberdade seria você respeitar a sua prisão. Seria isso… E respeitar a prisão dos outros.

 

O que lhe ocorre dizer sobre a visita a Moçambique?

Nós precisamos da aproximação do Brasil a Moçambique e a África, para voltarmos às raízes e termos essa ligação. Eu vim muito pensando nesse regresso ao colo da mamãe.

 

Perfil

Paulo Lins nasceu a 11 de Junho de 1958, na cidade de Rio de Janeiro, no Brasil. É escritor e escreve guiões para filmes. Fez parte do grupo Cooperativa de Poetas e publicou seu primeiro livro de poesia, “Sobre o Sol”, em 1986. Em 1997, Lins publicou Cidade de Deus, livro levado para o cinema por Fernando Meirelles e Kátia Lund, premiado no Festival de Cinema de Londres e que recebeu quatro indicações para o Oscar em 2004. Mês passado, participou na Feira do Livro de Maputo.

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