A periferia em versos

 

 

BEATRIZ BORGES

O sarau é uma atividade cultural crescente nas comunidades periféricas da Grande São Paulo, que se fortalecem com novos protagonistas e discursos.

A voz das periferias, comumente associadas a expressões artísticas do mundo do hip hop e do samba, arranha versos falados e cantados em saraus literários há mais de dez anos. Alguns encontros acontecem no centro de São Paulo, em espaços como livrarias, bibliotecas públicas ou SESCs (instituição sem fins lucrativos com espaços para atividades esportivas e culturais). Outros, como os saraus desta reportagem, são realizados nas periferias, em bares, casas particulares e CEUs (escolas de periferia com estruturas esportivas e recreativas). Tem poesia, mas também maracatu, bumba meu boi, teatro, pandeiros e palmas. Os temas são variados: amor, drogas, violência, racismo, mulheres, infância, dor, educação… Mas ainda que fosse possível explicar o que é um sarau, poucos dos que ocorrem em São Paulo se encaixariam em uma definição engessada. Apesar do dicionário garantir que se trata de uma “festa noturna, dentro de casa, onde se dança executa música e recita”, os que vem sendo realizados nas periferias vão além.

O casal Suzi Soares e Binho criaram reuniões com “atividades culturais diferenciadas”, em 1993, no Campo Limpo, um bairro na periferia sul a 22km do centro da cidade. Contam que nunca acharam que “daria certo”, mas deu. Começaram em um bar, promovendo a Noite da Vela, onde qualquer um poderia subir no caixote e declamar sua poesia. Em outra época, passaram a recolher placas de propagandas políticas para colar poesias e espalhá-las pela cidade. “A atitude subversiva-poética é o fio condutor da literatura na periferia”, diz Suzi, que trabalha como professora de inglês na rede pública. Mas, além disso, “é um movimento importante para valorizar as pessoas. Não soluciona, mas transforma muitas coisas”, afirma, contando casos de pessoas que voltaram a estudar depois de frequentar os encontros ou que descobriram talentos adormecidos. O ato de declamar em público fortalece as relações entre os moradores da comunidade e lhes dá o reconhecimento- que muitos não têm, nem mesmo em casa. Hoje o Sarau do Binho, que existe há oito anos, se realiza na segunda segunda-feira de cada mês no Espaço Clariô, em Taboão da Serra, cidade que faz divisa com o bairro Campo Limpo, a 23km do centro de São Paulo.

Toninho Poeta, um dos frequentadores assíduos do Sarau do Binho, senta no chão com um caderno aberto, repleto de poesias escritas à mão. Quando a inspiração veio, procurou uma folha em branco e começou a escrever. Não lhe incomodou que um grupo estivesse dançando coco a poucos centímetros de sua caneta. Sua técnica, explica, consiste em escrever qualquer frase que venha à mente. Depois, ler a primeira e escrever a segunda frase. E assim por diante. Acredita que “todos deveriam perder a virgindade do palco, que o humor não precisa estar sentado no preconceito e que é possível fazer música sem denegrir ninguém”. “Independentemente do que se fala no sarau, se aplaude. Porque o que vale é o interesse em tentar mostrar algo, mesmo se der branco”, explica.

Alguns encontros têm a mesma tradição e certa periodicidade, como os saraus da Cooperifa (Chácara Santana, periferia da zona sul), de Paraisópolis (na maior favela do Morumbi, zona sul de São Paulo), do Beco dos Poetas (itinerante), dos Mesquiteiros (zona leste)… Opções não faltam e quase todas estão reunidas na Agenda Cultural da Periferia, organizada pela ONG Ação Educativa. Apesar disso, os coordenadores do coletivo Periferia Invisível, na zona leste de São Paulo, opinam que não é apenas uma questão de que existam estes espaços, mas de que a comunidade tenha a cultura como um hábito e não como algo alheio a ela. “A vida na periferia é mecânica, são muitas horas para ir e voltar do trabalho e o que sobra de tempo, televisão”, explica Bruno Veloso, um dos criadores do espaço da Vila Císper, próxima à Vila Guilhermina. Binho Santana, outro membro do coletivo, relaciona a crítica da falta de espaços aos rolezinhos. Para ele, “os rolezinhos não surgem politicamente mas viraram luta social depois da repressão. O discurso da falta de espaço vem dos cientistas sociais que querem atribuir um valor a um movimento que nem se preocupa com isso. Mesmo se houvesse uma casa de cultura, os rolezeiros não viriam”, garante.

Há outros que também pensam que os saraus são eventos culturais que não alcançam as massas (dependendo do espaço onde é feito, o público varia entre 50 e 300 pessoas) e, por esta razão, não são tão transcendentes quanto gostariam que fossem. Lews Barbosa, de 40 anos, canta no grupo de rap Potencial 3 e participa de saraus e slam (variante que inclui competição de poesias) desde 2011. Quem viveu a transição de atividades centradas nas artes do hip hop (rima, grafite, dança, música) a outras mais focadas na literatura, diz que além de espaços, falta infraestrutura (banheiro, transporte público, segurança). A principal razão para que não existam mais reuniões como estas “é a estrutura precária dos espaços na periferia”, motivo pelo qual justifica a ida dos jovens aos shoppings, que têm uma estrutura adequada para receber o público. Barbosa não romantiza: “esses eventos na comunidade não são super populares, não vejo isso como fenômeno de massas, apenas mais uma opção na periferia”. Para que isso ocorra, o próximo passo, para Elizandra Souza, poetisa, é “a parte de formação cultural, para criar públicos, necessidades e aumentar as atuações na periferia”.

Aqueles que costumam frequentar concordam com Lews, dizendo que o sarau não tem uma relevância cultural na vida de toda a comunidade, mas reconhecem que ela muda a de algumas pessoas. Cristiane Lima é psicóloga e começou a frequentar os saraus há três anos. Para ela, ir a um sarau na periferia “resignificou” seu lugar no mundo. “Eu sai da periferia para buscar estudo, cultura, porque pensava que o bom estava fora daqui”, conta Lima, que mora em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, uma bairro de classe média alta. Ela define esses encontros como “guetos de pessoas que tentam ir na contramão sem ser pedantes”, através de um movimento legítimo de sair do lugar comum, do hegemônico. Lima conseguiu seu último trabalho, em uma biblioteca comunitária, através das pessoas que encontrou nos saraus. A concentração de coletivos e pessoas interessadas em arte é outro argumento que os participantes usam para explicar a importância desses espaços. “É uma aglomeração de muitas linguagens artísticas, uma manifestação da visão social da periferia”, explica Luan Luando, um participante do Campo Limpo que há oito anos frequenta os saraus.

Cada um tem sua razão e objetivo ao participar, seja pela necessidade de dizer algo que considera importante, ou simplesmente para ter a autonomia da palavra. Para Zá Lacerda, poeta que recitou um poema emprestado em espanhol, escrever e falar é quase um exorcismo. “Perdi meu marido e minha irmã em um curto espaço de tempo. Quem me reergueu foi a poesia e o sarau, só assim eu consegui seguir adiante e sorrir para a vida”. Lacerda se desnudou liricamente diante da plateia e arrancou aplausos emocionados. Distribuiu sorrisos e abraços fraternais, além de elogios sobre sua pronúncia. Nem ela nem ninguém deixou de se cumprimentar, ao chegar e ao sair. De crianças a idosos, todos se olhavam nos olhos de forma honesta. Essa micro-sociedade enfeitiçada pela subjetividade da poesia transbordava amor. A alma do sarau só pode vir desse sentimento.

 

 

Fonte: El País

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