A querela das terras de quilombos

Por: MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Quem está limitando o acesso às terras a “quem quer produzir” não são os quilombolas, e sim a parte mais atrasada da pecuária

Está de volta, como de hábito às vésperas de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, uma velha campanha. Segundo seus promotores, as terras que são destinadas a quilombos (desta feita, é delas que o Supremo vai tratar), a índios e a unidades de conservação diminuiriam ainda mais o já pequeno território brasileiro acessível a “quem quer produzir”.

Como, entre essas terras subtraídas a “quem quer produzir”, são também contabilizadas as cidades, conclui-se que esses promotores desejam transformar o Brasil numa grande fazenda. Voltaríamos às capitanias hereditárias?

Mas olhemos mais de perto. Analisando as áreas de conservação ambiental e as áreas indígenas, o Ipea, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, publicou, em dezembro de 2009, um estudo cujo título já diz tudo: chama-se “Unidades de Conservação e o Falso Dilema entre Conservação e Desenvolvimento”.

E, para quem acha que há áreas de conservação demais no Brasil, lembra que percentualmente à nossa parte do bioma floresta amazônica, estamos bem atrás de Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia.

Segundo a análise que o IBGE faz do último Censo Agropecuário, a concentração de terras pouco se alterou entre 1985 e 2006: a pequena propriedade rural, menor do que 10 hectares, que representa quase metade do número de propriedades, ocupa 2,7% da área total de estabelecimentos rurais.

No outro extremo, a grande propriedade, aquela acima de mil hectares, ocupa 43%. Se esta é mais rentável no absoluto, a pequena propriedade é mais racional no uso da terra e proporciona uma melhor distribuição de renda.

Não só também “produz”, mas sabe-se que ela é quem garante a segurança alimentar no Brasil.

Mas vejamos como se distribui, quanto a terras, o agronegócio.

O professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura da USP, de Piracicaba, desenvolveu pesquisas com colaboradores brasileiros e suecos, que serviram para que a associação brasileira da indústria da cana-de-açúcar defendesse, diante da União Europeia, a compatibilidade da expansão do cultivo da cana com os compromissos ambientais do país.

Em um artigo publicado em 2007, Sparovek e seus colaboradores relembram que quem se apropria da maior parte das terras cultiváveis brasileiras é a pecuária.

Um estudo de 2003, de Cardille e Foley, mostrou que, entre 1980 e 1995, dos 25 milhões de hectares deflorestados, 54% tinham sido convertidos em pastos, e só 7% serviam para cultivo. Em 1995, a pecuária ocupava 73% do espaço agrícola.

A criação de gado bovino, essa grande responsável pelo desmatamento na Amazônia, continua sendo feita de maneira extensiva, com uma densidade inferior a um boi por hectare!

Segundo o IBGE, o gado confinado ou semiconfinado não passava de 2,5% do total de gado em 2005.

O subsídio implícito da grilagem de milhões de hectares na Amazônia torna mais rentável, como mostrou o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), a criação extensiva do que o confinamento ou semiconfinamento. Mas rentável não equivale a racional.

Quem está limitando o acesso às terras a “quem quer produzir” não são, portanto, os índios, os quilombolas, as unidades de conservação e a pequena propriedade rural, e sim a parte tecnologicamente mais atrasada e predatória da pecuária.

O resto é conversa para boi dormir, ou melhor, para influenciar o Supremo.

Fonte: Folha de S.Paulo

+ sobre o tema

Mídia internacional repercute denúncia contra Michel Temer

Jornais mais importantes destacaram denúncia inédita a presidente exercendo...

A culpa por ser pobre e não ter estudado é totalmente sua

Leonardo Sakamoto A culpa por você ser pobre é totalmente...

Norte-americano assume culpa por complô para matar Obama

Um norte-americano se declarou culpado nesta segunda-feira das acusações...

Como é a vida das presas brasileiras?

A 5ª maior população carcerária feminina do mundo entre...

para lembrar

Burros n’água

quando li a cartinha desaforada de Temer, cheia de...

Novos ministros priorizam emprego, gasto público menor e inflação baixa

Integrantes da equipe econômica do futuro governo foram oficializados.Mantega...

Agamben: o flerte do Ocidente com o totalitarismo

Estado de Segurança: governos movimentam-se para restringir liberdades, atemorizar cidadãos...

Heleieth inaugurou o feminismo contemporâneo no Brasil

Deixou-nos em 13.12.2010 um ícone do feminismo: Heleieth Saffioti...

Em 20 anos, 1 milhão de pessoas intencionalmente mortas no Brasil

O assassinato de Mãe Bernadete, com 12 tiros no rosto, não pode ser considerado um caso isolado. O colapso da segurança pública em estados...

CPMI dos Atos Golpistas: o eixo religioso

As investigações dos atentados contra a democracia brasileira envolvem, além dos criminosos que atacaram as sedes dos três Poderes, políticos, militares, empresários. Um novo...

Como pôr fim ao marco temporal

A tese do marco temporal, aprovada na Câmara nesta terça-feira (30), é ancorada em quatro pilares: genocídio, desinformação, atraso e inconstitucionalidade. Dos dois últimos, deve-se dizer...
-+=