A Sociedade Protetora dos Desvalidos e a Resistência Negra no Brasil

Neste 16 de setembro de 2020, dia dedicado à devoção católica à Nossa Senhora da Soledade, também conhecida como Nossa Senhora das Dores, comemoram-se os 188 anos de fundação da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), importante espaço de agência coletiva para muitas mulheres e homens negros desde a primeira metade do século XIX até os dias atuais.

Essa associação, infelizmente pouco conhecida no Brasil, foi fundada em 1832, na cidade de Salvador, Bahia, no contexto dos primeiros anos de independência da nação brasileira, com o nome de Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. A confraria religiosa surgiu da iniciativa de um grupo de trabalhadores negros livres e libertos, que incluía pedreiros, marceneiros, calafates, carregadores e trabalhadores do ganho, sob a liderança de Manoel Victor Serra, que trabalhava como ganhador (prestando serviços sob demanda) e se tornou um personagem importante na articulação da Irmandade nesses primeiros anos.

Com as atividades inicialmente organizadas na Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Quinze Mistérios, localizada na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, a Irmandade dos Desvalidos tinha como objetivo principal, além de prestar serviços como caixa de empréstimos e sistema de penhores, funcionar como uma junta de alforria, que ajudava escravizados e seus familiares na busca por liberdade, mediante um sistema rotativo de crédito.

Após o ano de 1851, depois de disputas entre “irmãos” e “sócios” em relação à posse do patrimônio material e simbólico da Irmandade dos Desvalidos, a instituição passa a se configurar como civil, o que lhe confere o título de primeira associação civil negra do Brasil. Como uma associação civil, a SPD foi sediada em três lugares: primeiro na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, entre os anos de 1848 a 1868; depois em um prédio à Rua do Bispo, na Freguesia da Sé, até 1887, quando a associação se estabelece na atual sede, em um sobrado azul, no largo do Cruzeiro de São Francisco, na região do Pelourinho.

Sede no Largo do Cruzeiro de São Francisco

De acordo com os estatutos da associação civil, a partir de 1851, só eram admitidos como sócios efetivos “todos os cidadãos brasileiros de cor preta”, com o objetivo de auxiliá-los em situação de doença, invalidez, prisão, velhice e, até mesmo, após a morte, através de um funeral digno. Além disso, as lideranças da SPD comprometiam-se com pensões aos dependentes dos sócios, como viúvas, mães ou irmãs, bem como na supervisão da educação dos órfãos, pois sabiam da importância da leitura e da escrita no exercício da cidadania.

Apesar de estudos clássicos, como o livro Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor, do antropólogo Júlio Santana Braga, apontarem de forma indistinta as categorias de “irmandade” e “associação civil”, pesquisas recentes, como a tese de Douglas Guimarães Leite, “Mutualistas, graças a Deus”: identidade de cor, tradições e transformações do mutualismo popular na Bahia do século XIX (1831-1869), e a minha dissertação de mestrado, Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo, política e identidade racial em Salvador (1861-1894), sinalizam a existência de duas instituições distintas, a Irmandade dos Desvalidos (1832-1848) e a SPD (1851 em diante). Esses dois espaços de luta, em suas diferenças, são caracterizados por rupturas e continuidades, em que as memórias da fundação da instituição foram negociadas de acordo com os diferentes contextos históricos, como uma das muitas estratégias de resistência daquela organização negra.

Tanto a irmandade quanto a associação se constituíram num projeto único de emancipação da população negra, que incluía a afirmação de cidadania e a luta por direitos, como educação, dignidade, assistência mútua, participação política e pertencimento racial. Naquele espaço, trabalhadores negros, principalmente aqueles ligados à construção civil, e seus familiares, mães, irmãs, esposas, filhos e filhas, depositavam expectativas na oportunidade de visibilizar uma pauta política voltada a um grupo específico de gente negra, que se identificava pela “cor preta”, em um cenário marcado pelo silêncio racial, principalmente nas últimas décadas da escravidão. 

Como bem nos ensina Wlamyra Albuquerque, na obra O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, nas últimas décadas do século XIX, com o desmonte do sistema escravista, o Estado brasileiro manteve-se orientado pela racialização das relações sociais. A continuidade desse processo construiu novas formas de hierarquias baseadas em critérios raciais, que nem sempre eram evidenciados, mas seguiam dissimulados em um jogo perverso de deliberações das autoridades que excluíam a população negra dos espaços de poder.

A estratégia das autoridades brasileiras de construir um silêncio sobre a cor, com o objetivo de colocar em prática um projeto de nação homogênea, buscava não evidenciar as hierarquizações entre negros e brancos, tendo em vista o exemplo dos EUA. No entanto, esta lógica não impediu que a população negra também pudesse racializar sua presença no jogo político, através de uma associação negra como a SPD, capaz de proporcionar uma oportunidade de pautar as suas demandas, diante de um contexto em que o acesso à cidadania era frequentemente negado.

Infelizmente, durante muito tempo prevaleceu uma narrativa de que a população negra foi incapaz de construir espaços organizados e institucionalizados de política. Além disso, a ideia de que só existiu uma militância negra organizada apenas no século XX também foi uma dessas mentiras que nos contaram.

Sessão Solene de 16 de setembro de 1932

Ao observar a experiência da SPD, é inegável que aquele era um espaço político, precursor de iniciativas posteriores dos movimentos negros. Lideranças como Feliciano Primo Ferreira, José Pedro da Silva Paraguassu, Manoel Leonardo Fernandes, Antonio José Bracete, Manoel Querino, Marcolino José Dias, Felipe Benicio, Matheus Cruz e muitos outros foram capazes de articular e negociar com políticos baianos, benefícios importantes para a sustentabilidade da associação. 

A subvenção anual do Estado em 1883 e a isenção da décima urbana em 1889, antes da proclamação da República, são exemplos de importantes conquistas negociadas pelos membros da SPD. A décima era um imposto municipal por propriedade que pesava bastante nos cofres da associação, por conta dos imóveis que compunham o seu extenso patrimônio. Além disso, a subvenção anual do estado no valor de 1:000$000 (um conto de réis), que havia sido negociada com deputados da província ligados ao Partido Liberal, era um valor significativo e ajudava nas despesas da SPD.

É importante destacar que muitos desses trabalhadores negros estavam nas listas eleitorais como votantes e eleitores, exercendo, mesmo após a reforma eleitoral de 1881, um direito político negado à maioria da população, que era analfabeta, e influenciando eleições importantes na Bahia dos últimos anos do Império. Muitos exerceram sua cidadania como militares e serviram em cargos de comando na guerra contra o Paraguai. Outros sócios foram militantes do movimento abolicionista, atuaram em partidos políticos, estavam nas redes de sociabilidade dos candomblés, e organizavam-se em irmandades e associações de trabalhadores. Alguns eram professores e atuaram em debates importantes sobre os rumos da educação no Brasil. Ou seja, os sócios da SPD estavam nos espaços públicos e exerciam intensamente a sua cidadania.

Diretoria de 1932

Mas se engana quem acredita que as mulheres negras não foram protagonistas na história da SPD. Muitas viúvas, em especial, tinham noção dos seus direitos e sabiam muito bem mobilizar sujeitos importantes e documentações necessárias para exigi-los, garantindo o cuidado dos filhos e filhas. Nos velhos documentos guardados pela instituição, é possível conhecer a história de mulheres como Rosa Queirós da Costa e Souza, viúva de Felipe José da Costa e Souza, falecido em 8 de julho de 1896. Rosa Souza lutou para registrar seus filhos nos livros sociais da SPD para garantir sua pensão, pois se achava “impossibilitada de recurso para subsistir a si e os seus seis filhos menores em orfandade paterna”. Em 28 de agosto de 1881, Maria do Carmo Benedito dos Passos, 51 anos de idade, teve que apresentar uma certidão de casamento, para solicitar sua pensão, por conta do falecimento de seu marido, o alfaiate Amâncio Benedito dos Passos, que na época tinha 69 anos e era natural de Santo Amaro da Purificação, região do Recôncavo Baiano. Naquele mesmo ano de 1881, Margarida de Jesus Coelho, viúva do sócio Manoel José Coelho, mobilizou a ajuda de Manoel Leonardo Fernandes, que atuou na condição de procurador da viúva, para conseguir que ela recebesse a pensão que lhe era de direito. 

Por essas e por outras, este dia 16 de setembro de 2020, em que a SPD faz 188 anos de existência, é tempo de celebrarmos e aprendermos com as lições deixadas por esses ancestrais na luta antirracista. Atualmente, com a gestão de mulheres negras, como Lígia Margarida Gomes de Jesus e Regina Célia Santos Rocha, a SPD realiza ações de valorização da história e cultura afro-brasileira, com a finalidade de empoderamento da população negra. Além disso, a instituição coloca em prática projetos de promoção da igualdade e combate ao racismo, com políticas públicas e melhoria dos direitos das crianças, jovens, mulheres, homens negros e quilombolas. Vida longa à Sociedade Protetora dos Desvalidos! Vida longa ao povo negro!

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF08HI15 (8º ano: Identificar e analisar o equilíbrio das forças e os sujeitos envolvidos nas disputas políticas durante o Primeiro e o Segundo Reinado); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas).

Ensino Médio: EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

 

Assista ao vídeo do historiador Lucas de Campos no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Lucas Ribeiro Campos

Doutorando em História Social pela UFBA. E-mail: [email protected]. Instagram: @lucascampos8. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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