Acões afirmativas: tempo de acabar…

…com o preconceito

Sempre me assusta cada vez que a mainstream media resolve escrever “com propriedade” sobre relações raciais, especialmente no Brasil. O medo é pertinente, considerando que essa imprensa ipsi literis se caracteriza por produzir e reproduzir o pensamento das classes dominantes que detêm o poder econômico  e ditam o comportamento, os valores étnicos, simbólicos, raciais e culturais em suas sociedades ou nações.

Na semana passada, um caso não atípico figurou na imprensa internacional. The Economist,em sua edição de 26 de abril, publicou um ensaio que rendeu matéria de capa sobre o sistema brasileiro de cotas raciais e através do qual condena e prega o fim das ações afirmativas no Brasil.

A manchete “Time to scrap afirmative action” (“Tempo de acabar com as ações afirmativas”), com a imagem de uma silhueta de cabeça negra cujo prolongamento do pescoço se transforma num dedão polegar, negro, fazendo o sinal negativo, bem que poderia ser re-editada de acordo com a nossa sugestão na foto à direita da capa original: “Time to scrap the prejudice” (Tempo de acabar com o preconceito). E, em vez de Raca, Colour  and Caste (raça, cor e casta), bem que poderia ser Race, Colour and Amends (raça, cor e reparação) em seus subtitulos.

Ao desaprovar as ações afirmativas brasileiras, The Economist fere os valores identitários de um dos mais importantes membros do BRICS e tido com orgulho como uma das mais importantes diásporas africanas do planeta. Com todas as evidências de que o Brasil tem percorrido o caminho das ações afirmativas de modo mais transparente e democrático possível.

Sem falar no fato de que as ações afirmativas brasileiras são consideradas modelo para a africanidade emergente dos países latino-americanos que ainda engatinham na construção da suas identidades afro-latinas, mesmo passados dois séculos da abolição da escravidão africana.

O magazine londrino pegou como gancho e repercutiu o resultado de  pesquisas recentes que preevem um futuro mestiço para a humanidade somado à declaração do biólogo Stephen Stearns, da Universidade de Yale, que diz que “em poucos séculos, vamos todos parecer brasileiros”. 

The Economist não toma partido desse prognóstico como bom ou ruim, mas esse não é o caso. O fantasma do mito da democracia racial, há muito banido do discurso oficial por uma elite afro e parte do segmento da sociedade branca brasileira em geral é subrepticiamente pela revista ressuscitado. Ainda que as evidências de uma realidade que não pode ser mesclada e pela própria matéria citada mostrem o contrário. 

Brasil é comparado aos Estados Unidos em termos de constituicão da população “a partir de imigrantes europeus, africanos escravos e da remanescente população ameríndia reassentada”, diz o artigo entitulado “Afirmative Action: Slavery’s legacy” (“As ações afirmativas no Brasil: O legado de escravidão”, assinado por by H.J. |Sao Paulo.

“Com muito mais negros livres que durante a época da escravidão e depois que a escravidão acabou em 1888, sem leis segregacionistas como as de “Jim Crow” nos EUA, e nenhum tabu para romances inter-raciais, a cor no Brasil não se tornou uma variável binária, mas um espectro”, diz o ou a autora da matéria.

“Mesmo assim, a cor ainda é código para saúde, riqueza e status: Mulheres de pele clara e roupas de griffe desfilam em shoppings de luxo; empregadas domésticas de pele escura em pé atrás de uniforme com as sacolas e os bebês. Brasileiros negros e pardos ganham de três quintos tanto quanto os brancos. Eles teem duas vezes mais chances de serem analfabetos, ou estarem na prisão, e menos de metade da probabilidade de irem para a universidade. Eles morrem seis anos mais jovens e a causa da morte é duas vezes mais provável que seja assassinato” – ressalva o artigo.

The Economist também reconhece que essa desigualdade em recorte racial é gritante, mas que houve uma melhora no passado recente (exceto para a diferença entre as taxas de homicídio, que tem crescido com a disseminação do crack). “Não porque  o governo do Brasil está se voltando para os programas de ações afirmativas para apressar a mudança, ‘enquanto os Estados Unidos consideram abandoná-las’. Mas porque o Brasil tem se revelado um mercado de trabalho forte e os gastos do governo com uma melhor orientação e à universalização do ensino primário têm trazido ganhos para os brasileiros pobres, independentemente da sua cor” – diz outro parágrafo.

É quando Narciso acha feio o que não é espelho. As ações afirmativas brasileiras não constituem políticas  governamentais feitas de cima para baixo por um governo que assume  a causa dos trabalhadores e dos movimentos sociais, mas resultado de um processo político e social de democratizacão da sociedade que venceu o dogma de que o negro brasileiro só se viabilizaria através do futebol e da música.

Sociólogos me desmintam se fatores interligados ao processo educativo e político não podem ser considerados indicadores agregados que interferem para a melhoria das desigualdades visualizando a população afro-brasileira: da conquista do princípio constitucional da propriedade das terras quilombolas à existência de instrumentos legais para coibir o racismo e a intolerância religiosa; da abordagem de seus problemas específicos de saúde (como a anemia falciforme, diabetes e hipertensão) à conquista de espaço na mídia para representacão de si próprio;  do conhecimento do seu passado heróico à ocupacão de cargos políticos e públicos de relevância; da elevação da auto-estima ao planejamento de um melhor futuro.

Uma das diferenças básicas entre os Estados Unidos e o Brasil nesse quesito é que no país brasileiro se discute a viabilização da populacão afro-brasileira enquanto avanço coletivo.  O sistema de horizontalidade das oportunidades nos Estados Unidos também consideram os segmentos étnicos de alguma forma, embora funcionem para estimular a viabilização individual.  As ações afirmativas operam com perspectivas e não são perfeitas nos dois países: em ambos, as cadeias estão lotadas de jovens afrodescendentes. Que vai acontecer se elas acabarem?  

É esse olhar antagônico das Americas que The Economist qualifica como casta no caso do Brasil. Está na hora de acabar, sim, com o preconceito contra as ações afirmativas. E The Economist, como uma imprensa de reputação internacional que prima por um jornalismo inteligente poderia dar o exemplo.

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Por Ana Alakija

 

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Fonte: Alai Online 

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