ADPF das Favelas: falas de Jacqueline Muniz, Daniel Hirata, Michel Misse e mais

A audiência pública sobre a ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas, reuniu 66 participações como de amici curiae em dois dias (16 e 19 ) no STF. O objetivo é coletar informações que subsidiem um plano de redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, incluindo a proibição das operações policiais durante a pandemia.

Abaixo é possível ler trechos e acessar os discursos completos de Jacqueline Muniz, Daniel Hirata, Michel Misse, Pablo Nunes, Felipe Freitas, Juliana Farias, Cecília Olliveira e Gabriel Feltran.

Jacqueline Muniz – Professora da da UFF e fundadora da Rede Fluminense de Pesquisadores da Segurança Pública

Foto: Reprodução/ TV Justiça

“As operações policiais acontecem sem coordenação e articulação. Cada polícia faz a sua. Como cada polícia tem sua própria guerra a ser travada, o governante acaba por assinar cheques em branco que o obriga a gastar todo seu capital político para justificar o que não decidiu, o que não autorizou, o que não sabe como aconteceu. Torna-se um ventríloquo, um animador de auditório de quem ele devia comandar.

Não se trata de produzir controle sobre território e população, de policiar, cuja cobertura policial se dá com atividades convencionais, rotineiras e de menor visibilidade. Busca-se maximizar a percepção generalizada de insegurança e, assim, justificar a polícia ostentação no lugar da polícia ostensiva, a polícia de espetáculo no lugar da polícia rotineira.

Tem-se um gasto elevado de polícia de operações e uma economia de patrulhamento ostensivo diuturno, o que contribui para a manutenção de taxas elevadas da criminalidade violenta que atingem a maioria da população, além das altas taxas de letalidade e vitimização policiais.”

Acesse ao discurso completo neste link.

Daniel Hirata – professor da UFF e membro da GENI-UFF

Foto: Reprodução/ TV Justiça

“A violência policial é um dos mais graves e persistentes problemas públicos no Rio de Janeiro e as ações na área de segurança pública baseadas em operações policiais são parte desse problema. As operações policiais constituíram-se historicamente como o principal instrumento da ação pública na área da segurança, mas as operações policiais ocorrem ao revés das políticas públicas elaboradas com base em dados e evidências e, portanto, distanciam-se da lógica dos direitos e da prestação de serviços públicos. Elas se caracterizam no uso indiscriminado da força sobre a população negra, pobre e moradora de favelas, verdadeiro genocídio; também à serviço a interesses privados e, por vezes, criminosos, como na participação em milícias. Porque temos 4 vezes mais operações em áreas sob domínio do tráfico de drogas se a maior parte do Rio de Janeiro já são controlados por milícias?

Em ambos os casos, a brutalidade policial quase nunca resulta em responsabilização legal, 99,2% dos casos, o próprio Ministério Público solicita o arquivamento dos inquéritos sobre mortes perpetradas por policiais. Assim, o uso abusivo ou criminoso da força e a certeza da impunidade criam um círculo vicioso entre violência policial e corrupção. É justamente essa perversa estruturação sistêmica – que associa violência policial, corrupção e impunidade que vem criando forças policiais ineficazes e que, no limite, ameaçam as instituições do estado de direito.”

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Michel Misse – professor do IFCS/UFRJ, Coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“Um direito humano fundamental é o direito à apuração criteriosa das circunstâncias que definem se um homicídio foi doloso, culposo ou em legítima defesa ou com isenção de ilicitude, em operação legal. Como demonstram os estudos de Misse, Grillo, Teixeira e Néri (2013), não há perícia de local na maioria dos casos de letalidade policial. Verificou-se também que em 95% desses casos, por não haver evidencias suficientes produzidas pela polícia técnica, nem o testemunho de populares e familiares da vítima (seja por medo de retaliação ao testemunhar, seja por desinteresse da autoridade policial em investiga-los) prevalece o testemunho da própria equipe de policiais que realizou a operação fatídica. Outros estudos também demonstraram o mesmo resultado (Verani, 1996; Zaccone, 2015) para o Rio de Janeiro.”

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Pablo Nunes – Coordenador da Rede de Observatórios da Segurança e do Cesec

Foto: Reprodução/ TV Justiça

“É preciso lembrar que além de grandes operações, planejadas pelas chefias das polícias com antecedência e que contam com a participação de diversas unidades policiais, vivemos no estado diária e simultaneamente patrulhamentos armados e operações violentas em favelas e bairros de periferia, promovidas por milhares de agentes que circulam permanentemente armados com equipamentos letais automáticos e outros apetrechos bélicos. Essas operações se contam às centenas a cada mês. Quando uma operação resulta em morte e não estava planejada, a polícia diz que era um patrulhamento de rotina, e que seus agentes responderam à injusta agressão de opositores e por isso não estava justificada junto ao Ministério Público.”

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Felipe Freitas – integrante do Grupo de Pesquisa em Criminologia da UEFS e diretor do projeto Justa

“Gostaria de começar a minha fala fazendo uma denúncia! Agora, enquanto reunimo-nos nesta sessão, lideranças de Manguinhos entram em contato conosco para informar que, na região da UPA Manguinhos e da Biblioteca Marielle Franco, está acontecendo uma operação policial iniciada às 4:30 da manhã aterrorizando toda a comunidade. Espero que as autoridades adotem as medidas cabíveis para cessar este que é parece ser mais um dos descumprimentos da decisão deste Tribunal.

Ao longo dos debates já travados aqui falou-se amplamente sobre o tamanho da violência policial, sobre a dimensão racial deste fenômeno, sobre o impacto da violência na vida das famílias e das comunidades negras e, sobretudo, acerca da injustificável cooperação estatal em relação a este empreendimento genocida.

Todavia, penso que é urgente e necessário sublinhar aqui, na Tribuna desta Suprema Corte, o papel específico cumprido pelo Poder Judiciário na constituição deste fenômeno que ora discutimos.

O modelo de policiamento brasileiro está centrado no flagrante e nas grandes operações sobre territórios negros. Trata-se de um modelo que privilegia o confronto e que põe em risco as comunidades e os próprios policiais dentro de uma ótica de guerra que não produz nada em termos de efetiva segurança pública.”

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Juliana Farias – pesquisadora CIDADES – Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ

Foto: Reprodução/ TV Justiça

“Há 16 anos, Vossa Excelência, eu acompanho a atuação política de movimentos sociais protagonizados por essas mulheres que são as maiores especialistas em letalidade policial que vão passar por essa corte nesses dois dias de audiência pública – hoje, após completar todo o ciclo de formação acadêmica, incluindo dois pós-doutorados, afirmo isso com muita tranquilidade. Foi a partir da fusão entre os ensinamentos que recebi de mães e familiares de vítimas com os ensinamentos das salas de aula e dos livros que eu pude compreender o que vem sendo estruturado no Estado do Rio de Janeiro no que diz respeito à letalidade policial. Assim atuo como pesquisadora do CIDADES – Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ, núcleo que compreende a militarização como uma forma de governo. Como já foi indicado em diferentes falas que me antecederam, gostaria de ratificar que a questão da letalidade policial não é apenas uma questão de segurança pública. Segue em funcionamento no Estado do Rio de Janeiro, Excelentíssimo Ministro, uma engrenagem de mortes uma maneira extremamente perspicaz de realizar a administração burocrática dos homicídios decorrentes de intervenções policiais. O lado perverso deste processo é que ao administrar burocraticamente essas mortes, o que o Estado do Rio de Janeiro faz é violar direitos como se os estivesse protegendo; é descumprir sentenças como se as estivesse cumprindo.”

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Gabriel Feltran – falando pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia)

Foto: Reprodução/ TV Justiça

“Antropólogos têm uma forma de produzir conhecimento, a etnografia, que propõe o seguinte: se você quiser conhecer alguma coisa, você tem que conhecer essa coisa de perto. Se você quiser conhecer uma favela, ou uma operação policial, conheça-as na sua rotina.

Estudando a rotina das favelas nos últimos 20 anos, tenho afirmado que nelas não existe apenas um regime de governo. De perto, sabemos que nelas há ao menos 3 regimes de poder, governando a vida cotidiana e regulando os mercados ali. Não se trata de estados paralelos, como as pessoas costumam dizer. Esses regimes de poder se tocam todo o tempo, ora em choques armados, ora em acordos silenciosos.

O primeiro é o governo que emana das facções criminais, e da sua capacidade de gerar renda para jovens moradores das favelas, os que ocupam as posições baixas do tráfico de drogas, das economias de veículos e cargas roubados, do contrabando e da contravenção. Esse regime de poder faccional, como os outros, ampara seu governo local no acesso às armas de fogo. A Polícia Civil estima que haja 3,5 mil fuzis sob posse de facções criminais, apenas na cidade no Rio de Janeiro.”

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Cecília Olliveira – Jornalista e diretora do Fogo Cruzado

Foto: Reprodução/ TV Justiça

Os senhores devem se lembrar de Emily e Rebecca, primas de 4 e 7 anos, mortas por balas perdidas na porta de casa durante uma ação policial em Caxias, em dezembro. É isso que devemos evitar. Na semana passada batemos a horrível marca de 100 crianças baleadas no grande Rio. Quem se importa com estas crianças, majoritariamente negras e pobres? Os senhores desta corte precisaram intervir, já que o Estado do Rio de Janeiro não se importa. Os senhores são nossa última instância no apelo pela vida destas crianças. Sem a intervenção deste Tribunal, quantas crianças mais vão morrer? Elas dependem dos senhores.

Quando a família de Emily e Rebecca foi dilacerada, os números da violência armada já estavam subindo, marcando o desrespeito à decisão do STF e ao descumprimento da ADPF.

Junho de 2020, logo após a medida, foi o mês com menos tiroteios envolvendo a presença de agentes de segurança da história do Fogo Cruzado e também o mês com menos feridos.

Os meses seguintes apresentaram leve tendência de aumento. Até que em outubro houve o primeiro pico de violência armada com presença de agentes de segurança da série.

Vale lembrar que Cláudio Castro assumiu o governo no fim de agosto, após afastamento de Witzel. O secretário de polícia civil escolhido por Castro, Alan Turnowski, já assumiu o cargo dizendo que as restrições determinadas pelo STF não impedem operações no Rio porque, segundo ele, o estado vive situação de ‘exceção’. A decisão do secretário é uma afronta a este Tribunal. Esta postura leva terror às populações pobres que já estão tremendamente afetadas por esta pandemia.

Acesse ao discurso completo neste link.

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