AmarElo – É tudo pra ontem: um olhar reflexivo sobre o Brasil

Desde o lançamento do álbum AmarElo, o rapper Emicida realiza um projeto que é simultaneamente artístico e intelectual de leitura e criação de projetos do Brasil. O documentário “AmarElo – É tudo para ontem”, lançado pela plataforma de streaming Netflix no dia 8 de dezembro, é mais uma realização dessa face do trabalho do artista. A mescla da narrativa pessoal da construção do álbum com a memória de marcos históricos e culturais do Brasil incita um exercício cada vez mais necessário: a conciliação entre o conhecimento, a política e o afeto. Esse movimento é o que permite que o disco seja um encontro entre passado, presente e futuro, revisitando a história brasileira, os conflitos e possibilidades apresentados pelo presente e os futuros que o reconhecimento da coletividade e da interdependência permitem. “Tudo, tudo, tudo que nóiz têm é noiz.”.

Emicida propõe uma expressão da brasilidade que parte das cosmopolitas margens do Brasil. Se acompanharmos a diferenciação que ele mesmo faz entre um brasil, com letra minúscula, que ainda carrega os fardos, cicatrizes e feridas francamente abertas do período colonial, e o Brasil cultural, social e politicamente múltiplo e potente que espreita sempre como possibilidade de resistência, é do centro desse último que saem tanto o disco como o documentário. Retomando a história do samba junto à do hip-hop, o músico une duas expressões do pensamento negro complementares. O samba tem olhado para as realidades das periferias – físicas e sociais – desde a sua origem, contado a sua história e expressando o seu valor, misturando a melancolia e a alegria que marcam a capacidade de agência dos sujeitos desses lugares. O hip-hop, surgido como um gênero de denúncia e contestação é capaz de mobilizar gerações em defesa de direitos e da retomada da autoestima. Combinar esses dois ritmos é, como ele afirma, uma forma de devolver a alma para cada um dos seus irmãos. Isso significa, em primeiro lugar, um olhar mais complexo para a população negra e pobre do Brasil.

Como fica claro em seu documentário, esses grupos não são massas a serem educadas na direção da sua libertação, mas desde sempre foram agentes dela, tanto por meio das interpretações de sua própria realidade e da sociedade de uma forma mais ampla, como pela sua atuação política. “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes.”. Por outro lado, não são heróis e heroínas sobre-humanos, mas pessoas que quotidianamente sofrem os impactos da estrutura de hierarquias de raça, gênero e classe. “A merendeira desce, o ônibus sai, dona Maria já se foi, só depois é que o sol nasce.”. Trabalhos como os de Emicida são um avanço no projeto humanista do mundo porque destacam as formas de desumanização a que diversos grupos estão sujeitos, os projetos de defesa da sua humanidade e a sua capacidade de agência no mundo. O sujeito de Emicida não é só dor nem só alegria, não tem só uma face e é, de fato humano na conciliação de suas contradições.

Outro feito do artista é uma reflexão sobre o próprio status da arte na ação política. Mais do que apenas um meio para a conscientização ou para a promoção de um projeto, o documentário explicita a vontade de utilizar a música para construir em conjunto projetos sociais, sendo ela, em si, tão teórica e complexa quanto um livro de filosofia e história. “A música é só uma semente”, mas é uma semente que propõe o pensamento conjunto, o cuidado quotidiano e a política de afetos. Não é atoa que lideranças políticas que tem conseguido projetar outra forma de fazer política tenham laços com o movimento hip-hop, como Áurea Carolina, deputada federal de Minas Gerais pelo Psol.

Finalmente, Emicida reposiciona a música brasileira no mundo. Mais que uma expressão do Brasil, AmarElo é um manifesto para que observemos como as nossas formas locais de expressão e a nossa história se conectam com diversas outras no globo. “Meu cântico fez do Atlântico um detalhe quântico” porque as suas influências, desde o hip-hop (original da Jamaica e popularizado pelos Estados Unidos), o samba brasileiro, a colaboração com artistas da diáspora lusófona e da América Latina estabelecem pontes não para dizer que nossas trajetórias são as mesmas, mas que podemos contribuir com nossas semelhanças e diferenças para a criação de uma potência global de resistência contra os impactos do racismo.

A obra de Emicida é uma expressão de esperança. O filósofo americano Cornel West diz que a esperança não deve ser confundida com otimismo: “A esperança vai contra a maré, a esperança e participativa, um agente no mundo. O otimismo olha para as evidências de forma a observar se devemos fazer x ou y. Esperança diz ‘eu não ligo, vou fazer de qualquer jeito’.”. É assim que o artista olha para os contextos global e brasileiro e propõe uma liberdade humana de fato, por completo, para todos e todas.

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