Dos fazeres de Joel Rufino dos Santos. Três ou quatro obras em mote negro

joel rufino1
(Foto: Divulgação/ Editora Moderna)

Daruê, sabe esse livro aqui? – e mostro “O barbeiro e o judeu da prestação contra o sargento da motocicleta” que lemos mês passado entre os percursos da condução e as manhãs no sol do quintal.

– Sei, pai. Lembro do barbeiro brigando no meio da espuma, as cadeiras reviradas, era tempo de guerra… Lembro o sotaque do judeu. Ele diz que falava assim porque tinha engolido um gato, né? E o sabonete feito da mãe e do pai dele, você lembra, pai?

– Sim. Quem escreveu foi esse senhor aqui, o Seu Joel Rufino. Ele morreu ontem. Escreveu esses outros livros. – e mostro mais capas, falo de cada um. Até que Daruê, sempre mestrinho, sumaria antes da sua pergunta de sempre.

– Ele escreveu ele. Morreu como?

Tem três obras de Joel que são perpétuas pra quem lê, entre outras.

joel rufino2
(Foto: Divulgação/ Editora Pallas)

Uma é o “Na Rota dos tubarões”, introdução à história do trãfico escravista, do cemitério Atlântico. É das raras introduções que pela trança entre frieza e inconformismo, pela graça dos detalhes e pela coragem de apontar as contradições, é profunda. Esmiuçando as bases e os gestos na confecção dos tecidos e do açúcar, nas escalas dos portos em Cabinda ou em Birminghan, nos dedos que agulharam ou massagearam as solas dos reis e sobás, na geometria das razões financeiras e bentas da espremeção de alma, Seu Joel traduziu o tom das despedidas, a pança e o cofre cheio dos banqueiros, as visões e cheiros distintos de mundo, a raiva desnudando a esperança. E é edição de pura beleza, não esqueço nunca o desenho do mano remando pelo mar dentro de uma xicrinha de café, nas ilustras de Rafael Fonseca.

joel rufino 3
(Foto: Divulgação/ Editora Garamond)

E a sua biografia de Carolina Maria de Jesus? Por acaso encontrei numa biblioteca, comecei a folhear e assim fiquei pela tarde inteira ainda de pé colado na prateleira, começando pelo fim e meiando pelo começo. Livro alinhando o estilo de Carolina e suas pisadas de menina, colocando na mesma mesa as esperanças e os xingos da escritora bebendo com personagens populares que ela talvez nem conheceu, quase anônimos não fosse um dia de manchete inglória no jornal, mas que eram miolo de suas ficções, vagassem por onde vagassem. Perguntando de outros finais e imaginando leituras feitas nas delegacias e palanques, considerou os sambas e a caneta de Carolina pelos gêneros do epistolar ao romance, da poesia ao memorial, driblando muralhas ou atolando no lameiro dos racismos brasileiros, dando vazão ao que precisava escrever. Dispensando linha cronológica, Seu Joel abriu viagem pelas surpresas de alvenaria e decepções de aço dos dedos de Carolina, historiou o blues do asfalto e vestiu outros olhos de ler, ensinando a ler das goteiras do mapa-múndi na história de Carolina.

joel rufino 4
(Foto: Divulgação/ Editora Global Editora)

E “Épuras do social – como os intelectuais podem trabalhar para os pobres?”, compondo nas frestas desse título inusitado, facinho de desconfiar, Seu Joel foi cirurgião enquanto descortinava que caramba será mesmo um intelectual… E o que são pobres na fala de alguém hoje ou nos discursos de cem ou duzentos anos pra trás. Fita que muda pra se manter. Arrepiante sua letra esmiuçando porque Paulo da Portela e Adoniran foram sensibilidades pensantes, mãos engenheiras esquadrinhando becos e trilhos de trem, intelectuais de fôlego pelejando pela forma mais apta. Neste livro, Seu Joel também escreveu dos abismos e labirintos entre Bispo do Rosário e Milton Santos, expondo como as correias do poder engoliram a sofisticação e a mira de suas obras, a troco de cicatrizes.

Mas antes do arremate ao perguntar por que enfim os pobres trabalham para quem se ocupa de analisá-los, quais medos e vampiragens brotam dessa teia e o que de malungagem real pode se firmar, fera foi Seu Joel dialogar com a obra de outro grande mestre, Muniz Sodré. Considerando central a questão negra pra compreensão de qualquer minuto da história do Brasil, debatendo comunicação e comunidade, luta e ideias de revolta, apreciando as metamorfoses do que seja cultura e suas asas abrindo no que é matéria, tempo que se pega e se come.

Fez sua passagem o professor, o editor, o jornalista, o pesquisador. Bamba, esteja em paz. De Seu Joel, entre tantos trabalhos mais coordenando coleções e atos na rua, fica até mesmo o grande mistério de como, com sua consultoria, o “Quilombo”(1984) de Cacá Diegues pode ser um filme tão fraco e estereotipante em termos de história, anacrônico, contemplando exatamente o que fosse pra agradar a platéia da ‘esquerda’, oferecendo noções de quilombagem que qualquer pesquisador sério do tema sabe que ficam no raso.

A obra do mestre Joel Rufino dos Santos fica a quem quiser ler. Essencial em tempos de chilique e de absoluto berreiro pela internet. Nela voga o que pude presenciar na Mangueira em 2014, numa de suas últimas rodas públicas, quando ele proseava com crianças sempre abrindo perguntas. Como princípios e miolo, as perguntas. Fundamentadas e simples, poesia de caminho. Pavor de quem gagueja bandeiras sem considerar a história da ventania.


+ sobre o tema

Milton Santos

Milton Almeida dos Santos (Brotas de Macaúbas, Bahia, 3 de...

Machado e a política

A campanha eleitoral, como outras, tem sido pródiga em...

20 anos sem Oracy Nogueira, por Rafael Balseiro Zin

Neste 16 de fevereiro de 2016, recordamos os 20...

Canto das três raças (1974)

Composição: Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte Interpretação: Clara...

para lembrar

Ayobami Adebayo, jovem escritora nigeriana, vai participar da Flip 2019

Autora de 'Fique comigo', ela foi aluna de Chimamanda...

Lilico por Noriko Izumi Kawabata

por Noriko Izumi Kawabata  via Guest Post  para o Portal Geledés Era uma vez...

A Lista das meninas mais bonitas

"Cê lembra daquela famosa 'lista das meninas mais bonitas...
spot_imgspot_img

Crianças do Complexo da Maré relatam violência policial

“Um dia deu correria durante uma festa, minha amiga caiu no chão, eu levantei ela pelo cabelo. Depois a gente riu e depois a...

Em autobiografia, Martinho da Vila relata histórias de vida e de música

"Martinho da Vila" é o título do livro autobiográfico de um dos mais versáteis artistas da cultura popular brasileira. Sambista, cantor, compositor, contador de...

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...
-+=