Daruê, sabe esse livro aqui? – e mostro “O barbeiro e o judeu da prestação contra o sargento da motocicleta” que lemos mês passado entre os percursos da condução e as manhãs no sol do quintal.
– Sei, pai. Lembro do barbeiro brigando no meio da espuma, as cadeiras reviradas, era tempo de guerra… Lembro o sotaque do judeu. Ele diz que falava assim porque tinha engolido um gato, né? E o sabonete feito da mãe e do pai dele, você lembra, pai?
– Sim. Quem escreveu foi esse senhor aqui, o Seu Joel Rufino. Ele morreu ontem. Escreveu esses outros livros. – e mostro mais capas, falo de cada um. Até que Daruê, sempre mestrinho, sumaria antes da sua pergunta de sempre.
– Ele escreveu ele. Morreu como?
Tem três obras de Joel que são perpétuas pra quem lê, entre outras.
Uma é o “Na Rota dos tubarões”, introdução à história do trãfico escravista, do cemitério Atlântico. É das raras introduções que pela trança entre frieza e inconformismo, pela graça dos detalhes e pela coragem de apontar as contradições, é profunda. Esmiuçando as bases e os gestos na confecção dos tecidos e do açúcar, nas escalas dos portos em Cabinda ou em Birminghan, nos dedos que agulharam ou massagearam as solas dos reis e sobás, na geometria das razões financeiras e bentas da espremeção de alma, Seu Joel traduziu o tom das despedidas, a pança e o cofre cheio dos banqueiros, as visões e cheiros distintos de mundo, a raiva desnudando a esperança. E é edição de pura beleza, não esqueço nunca o desenho do mano remando pelo mar dentro de uma xicrinha de café, nas ilustras de Rafael Fonseca.
E a sua biografia de Carolina Maria de Jesus? Por acaso encontrei numa biblioteca, comecei a folhear e assim fiquei pela tarde inteira ainda de pé colado na prateleira, começando pelo fim e meiando pelo começo. Livro alinhando o estilo de Carolina e suas pisadas de menina, colocando na mesma mesa as esperanças e os xingos da escritora bebendo com personagens populares que ela talvez nem conheceu, quase anônimos não fosse um dia de manchete inglória no jornal, mas que eram miolo de suas ficções, vagassem por onde vagassem. Perguntando de outros finais e imaginando leituras feitas nas delegacias e palanques, considerou os sambas e a caneta de Carolina pelos gêneros do epistolar ao romance, da poesia ao memorial, driblando muralhas ou atolando no lameiro dos racismos brasileiros, dando vazão ao que precisava escrever. Dispensando linha cronológica, Seu Joel abriu viagem pelas surpresas de alvenaria e decepções de aço dos dedos de Carolina, historiou o blues do asfalto e vestiu outros olhos de ler, ensinando a ler das goteiras do mapa-múndi na história de Carolina.
E “Épuras do social – como os intelectuais podem trabalhar para os pobres?”, compondo nas frestas desse título inusitado, facinho de desconfiar, Seu Joel foi cirurgião enquanto descortinava que caramba será mesmo um intelectual… E o que são pobres na fala de alguém hoje ou nos discursos de cem ou duzentos anos pra trás. Fita que muda pra se manter. Arrepiante sua letra esmiuçando porque Paulo da Portela e Adoniran foram sensibilidades pensantes, mãos engenheiras esquadrinhando becos e trilhos de trem, intelectuais de fôlego pelejando pela forma mais apta. Neste livro, Seu Joel também escreveu dos abismos e labirintos entre Bispo do Rosário e Milton Santos, expondo como as correias do poder engoliram a sofisticação e a mira de suas obras, a troco de cicatrizes.
Mas antes do arremate ao perguntar por que enfim os pobres trabalham para quem se ocupa de analisá-los, quais medos e vampiragens brotam dessa teia e o que de malungagem real pode se firmar, fera foi Seu Joel dialogar com a obra de outro grande mestre, Muniz Sodré. Considerando central a questão negra pra compreensão de qualquer minuto da história do Brasil, debatendo comunicação e comunidade, luta e ideias de revolta, apreciando as metamorfoses do que seja cultura e suas asas abrindo no que é matéria, tempo que se pega e se come.
Fez sua passagem o professor, o editor, o jornalista, o pesquisador. Bamba, esteja em paz. De Seu Joel, entre tantos trabalhos mais coordenando coleções e atos na rua, fica até mesmo o grande mistério de como, com sua consultoria, o “Quilombo”(1984) de Cacá Diegues pode ser um filme tão fraco e estereotipante em termos de história, anacrônico, contemplando exatamente o que fosse pra agradar a platéia da ‘esquerda’, oferecendo noções de quilombagem que qualquer pesquisador sério do tema sabe que ficam no raso.
A obra do mestre Joel Rufino dos Santos fica a quem quiser ler. Essencial em tempos de chilique e de absoluto berreiro pela internet. Nela voga o que pude presenciar na Mangueira em 2014, numa de suas últimas rodas públicas, quando ele proseava com crianças sempre abrindo perguntas. Como princípios e miolo, as perguntas. Fundamentadas e simples, poesia de caminho. Pavor de quem gagueja bandeiras sem considerar a história da ventania.