Renata Mendonça Da BBC Brasil em São Paulo
Duas semanas atrás, o Grêmio foi punido pelo STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) e acabou excluído da Copa do Brasil pelos gritos de “macaco” proferidos por alguns torcedores e direcionados ao goleiro Aranha, do Santos, adversário naquela partida em Porto Alegre. No reencontro dos dois times, na última quinta-feira, não foram flagrados insultos racistas. Mas ecoaram vaias e um outro grito no estádio: “Aranha veado, Aranha veado”.
Um coro comum a praticamente todas as torcidas e que costuma ser ouvido em praticamente todos os estádios brasileiros – só varia o nome do jogador “ofendido”. É como se a luta contra a homofobia ficasse de lado ou nem mesmo existisse, se comparada com a luta contra o racismo nos estádios.
Para os mais recentes movimentos de torcida de futebol que lutam pelo fim do machismo e do preconceito contra homossexuais nos estádios, são gritos como este que ajudam a tornar as arquibancadas um ambiente “hostil e opressor”, até mesmo intimidador, para gays.
Galo Queer, Palmeiras Livre e Bambi Tricolor. Todos esses grupos de torcedores se uniram pelo Facebook para lutar pelo espaço à diversidade no futebol. Mas, depois de um ano na ativa, eles ainda não conseguiram “sair do armário” das redes sociais e ir ao estádio.
“O grito de ‘bicha’ ou ‘veado’ é para diminuir o outro, tentar ofender, porque pra as torcidas ser gay é inferior a ser heterossexual”, disse William, um dos fundadores da Palmeiras Livre, movimento de torcedores palmeirense a favor da diversidade no futebol, à BBC Brasil.
“Gritar isso dentro do estádio é tão homofóbico quanto gritar fora, na sociedade”, endossou Mara, torcedora do Atlético-MG e organizadora da Galo Queer, outro movimento anti-homofobia e antissexismo no futebol.
Medo
A diferença da homofobia que percebem fora e dentro do estádio, eles explicam, está na intensidade.
“Um jogo de futebol mexe com emoção, então tem uma demonstração amplificada de machismo, racismo, homofobia”, explicou William.
“É extremamente opressor. Sou muito bem resolvido e não tenho problema nenhum em demonstrar que sou gay em lugar nenhum. Mas, no estádio, a gente corre o risco de ser agredido de verdade.”
A torcida Palmeiras Livre surgiu em abril do ano passado, logo depois que a Galo Queer, do Atlético-MG, inovou criando o movimento anti-homofobia no futebol em Minas Gerais. A Bambi Tricolor, do São Paulo, surgiu também nesta época.
As páginas tiveram um sucesso imediato. “Era uma demanda reprimida”, disse Nathália, fundadora da Galo Queer.
Hoje, cada uma das torcidas tem milhares de curtidas em suas páginas. São mais de 7,5 mil na da Galo Queer e quase 3 mil nas da Palmeiras Livre e da Bambi Tricolor – e o número de adeptos segue crescendo.
No entanto, uma ida ao estádio para defender a causa gay de cima das arquibancadas ainda é pouco cogitada.
“Isso não é possível. Ainda é muito aparecer no estádio com esses símbolos. Se na internet a gente já recebe ameaça, imagina se fôssemos ao jogo”, diz Nathália.
Ela explica que as pequenas manifestações já tentadas foram coibidas. “Uma menina viu nossa página e levou para o Mineirão um cartaz onde estava escrito ‘Galo Queer, cartão vermelho para o preconceito’, mas seguranças não deixaram ela entrar com o cartaz. Disseram que era inadequado.”
“Nós vamos ao estádio, juntos e com outros amigos, mas nunca como Bambi Tricolor. Não seria seguro, infelizmente”, diz uma das fundadoras do grupo.
No caso de William, ele mesmo sentiu na pele a necessidade de se policiar para não demonstrar afeto pelo namorado, que foi com ele a um jogo do Palmeiras.
“Fomos com dois amigos heterossexuais, porque sabíamos do risco de sermos agredidos. E, no perímetro do estádio, a gente não demonstrava nenhum afeto de forma clara. A gente se abraçou na hora do gol, mas sabíamos que havia um limite”, pontuou.
Ele afirma que a Palmeiras Livre já pensa em ir ao estádio, mas ainda há um muito receio quanto à possibilidade de agressão. A intenção é contatar o próprio time para tentar obter um apoio do clube.
Fora do armário
Apesar das torcidas gays de hoje ainda terem medo de frequentarem o estádio, surgiu na década de 1970 um movimento ainda mais desafiador para a época e que cavou espaço para gays nas arquibancadas brasileiras.
A Coligay, primeira torcida organizada gay de que se tem registro no país, foi fundada em 1977 por torcedores do Grêmio e, em pleno período de ditadura militar e conservadorismo, conseguiu até mesmo conquistar o apoio dos gremistas no estádio.
“Eles chegaram pedindo licença. Foram falar com o Grêmio e disseram que queriam apoiar o time. O Grêmio caiu de paixão pelos caras. Eles tinham até espaço reservado no Olímpico para guardar as bandeiras”, conta o jornalista Leo Gerchmann, autor de Coligay, tricolor e de todas as cores (Libretos, 2014), à BBC Brasil.
“Eles tiveram sensibilidade, sabiam que era uma época muito conservadora. Acho que, se for preparado o terreno, dá para acontecer a mesma coisa agora. E seria fantástico para toda sociedade.”
Como a homofobia ainda não é plenamente reconhecida como um problema – é vista como um “xingamento que faz parte do contexto do futebol” –, esse comportamento ainda não tem sido combatido formalmente no futebol brasileiro.
Na Europa, principalmente desde o ano passado, federações e clubes se uniram em campanhas contra a homofobia, como a “Rainbow Laces” (Cadarços Arco-íris, numa tradução livre), lançada na Inglaterra.
Nesta campanha, jogadores dos clubes da principal liga do futebol inglês usaram cadarços coloridos nas chuteiras para conscientizar as pessoas sobre o problema. Outras iniciativas parecidas já ocorreram na Alemanha e na Espanha.
No Brasil, o Corinthians foi o primeiro clube a se posicionar sobre o tema no manifesto que divulgou na semana passada.
Silvio Ricardo da Silva, coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que há dois caminhos para o combate à homofobia no futebol brasileiro.
“Por um lado, há um trabalho educacional mesmo, com campanhas de conscientização feitas por clubes. Por outro, são necessárias punições, assim como está havendo com o racismo.”
As torcidas gays concordam que a punição é necessária para coibir o problema. “Se não fizer isso, as coisas não mudam”, disse Mara, da Galo Queer.
Os fundadores destes grupos elogiam a atitude do Corinthians e esperam que mais clubes façam o mesmo para mudar a realidade atual, tornando comum também para eles algo que já é corriqueiro para torcedores heterossexuais.
“Meu sonho é ir com meu namorado em qualquer lugar do estádio em um jogo do meu time e poder dar um beijo na boca”, diz William, da Palmeiras Livre.
*Os sobrenomes dos membros dos movimentos pela diversidade no futebol foram preservados para evitar represálias.
Fonte: Athosgls