Apesar de onipresente, assédio sexual retorna aos bastidores

Ainda aceitamos uma cultura generalizada de abusos

Nascida no Bronx, bairro de Nova York, Tarana Burke foi estuprada e abusada sexualmente em sua infância e adolescência. Ao ouvir um relato de uma menina de 13 anos que lhe confidenciou ter sofrido violência sexual, Burke diz que não soube como responder, mas sentiu vontade de dizer: “Eu também”.

Em 2006, na rede social Myspace, ela começou a usar essa frase, que em inglês significa “Me Too”, como uma forma de empoderar mulheres abusadas sexualmente. Germinava ali a semente de um dos movimentos mais marcantes da década passada. Ele eclodiu em 2017, quando a atriz americana Alyssa Milano fez uma postagem no Twitter dizendo: “Se você foi assediada ou agredida sexualmente, escreva “MeToo” como resposta a este tuíte”.

Em poucas horas, o engajamento nas redes sociais se espalhou pelo mundo. O que no início foi uma denúncia dos bastidores de Hollywood rapidamente avançou para outros setores industriais, universidades, igrejas e política.

Manifestação do movimento #MeToo em Hollywood, Los Angeles – Lucy Nicholson – 12.nov.2017/Reuters

A hashtag #MeToo parecia ser um movimento que levaria ao alvorecer de uma nova era. Entretanto, a magnitude do problema era maior do que muitos pensavam. O movimento mostrou que o assédio e as agressões sexuais são algo onipresente. Enquanto o movimento avançava, foi ficando evidente que vários amigos, irmãos, filhos e maridos também cometem esse tipo de crime.

Meses depois, surgiu uma onda negativa à revolução. Milhares de homens estavam sendo destruídos. Muitos deles eram poderosos. Alguns eram inocentes. Relatos falsos existem, porém há estudos que sugerem que eles são raros (“False reporting of sexual victimization: prevalence, definitions, and public perceptions”, 2020).

Outros não agrediam, mas tinham “condutas inadequadas”. Vários que paqueravam no ambiente de trabalho ou fora dele estavam sendo colocados no mesmo grupo de estupradores. No entanto, esses mesmos paqueradores muitas vezes subtraem constantemente as liberdades das mulheres. Em parte, isso ocorre porque costuma haver considerável incompatibilidade de percepções. O que pode representar um flerte inocente para uma pessoa pode ser visto como assédio e invasão de um espação não concedido para outra.

Nesse contexto, ficou cada vez mais evidente a necessidade de redefinir as linhas comportamentais. A constante importunação sexual afeta o progresso feminino em várias dimensões da vida. Os papéis de gênero e as normas sociais precisariam ser mais bem debatidas e repensadas. O comportamento predatório e a objetificação sexual deveriam ser combatidos.

Apesar de a explosão do #MeToo ter trazido essas importantes discussões para as linhas de frente do debate público, em muitos lugares rapidamente elas voltaram para os bastidores. Isso ocorreu porque intrínseco a tal debate também está o desequilíbrio de poder e privilégios.

Entretanto, o movimento deixou profundas transformações na sociedade americana. Diversas mudanças ocorreram. Houve a criação de leis estaduais, compensações para as sobreviventes e até fundos para financiar os gastos com advogados das mulheres mais desfavorecidas. Muitas quebraram o silêncio e viram que não estavam sozinhas.

No caso brasileiro, pouco foi feito. Ainda somos uma sociedade muito complacente a aceitar uma cultura generalizada de abusos.


O texto é uma homenagem à música “Til it Happens to You”, de Diane Warren e Lady Gaga, interpretada por Lady Gaga.

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