“Aprendi que em cada momento histórico, devemos nos posicionar com muita sabedoria e análise do contexto”

Enviado por / Fontepor Katia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

A professora e pesquisadora Antonia Aparecida Quintão assumiu há um mês a presidência do Geledés – Instituto da Mulher Negra- e destaca para a sua gestão, a contribuição para a elaboração do Plano Estratégico da organização que já está em andamento.   

Com Doutorado em Cultura Afro-brasileira e atualmente especialista e pesquisadora na área de Relações Raciais nas Organizações, Antonia Quintão é Coordenadora Adjunta de Cursos de Educação Continuada no Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-presidente no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde organiza e coordena desde 2016 os eventos alusivos a Década Internacional de Afrodescendentes (ONU-Resolução 68/237). 

Considero que a presença e a importância da população negra e indígena na História de São Paulo tem sido subestimada e desqualificada, predominando a divulgação de uma abordagem incompleta e mutilada, que desinforma, aliena e cristaliza preconceitos. 

Antonia é professora convidada no curso de Difusão Cultural: “Aspectos da Cultura e da História do Negro no Brasil” do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São Paulo e também pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, onde concluiu a pesquisa “Relações Brasil-África: Aspectos Político-Estratégicos, Econômicos e Histórico-Culturais” que resultou na publicação do livro “Brazil-Africa Relations Historical Dimensions and Contemporary Engagements”, publicado pela Editora James Currey, em 2019, no Reino Unido, no qual foi responsável pelo sexto capítulo intitulado: Africa in Brazil: Slavery, Integration, Exclusion. 

Antonia Quintão, que participou de um projeto de combate ao analfabetismo com o método Paulo Freire ainda na adolescência, teve a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente em uma entrevista para um trabalho de graduação. “Paulo Freire foi muito acessível, nos recebeu com muita simpatia, falou da importância estratégica da educação para a transformação social e pediu para não desanimarmos diante das dificuldades, para não nos conformarmos com as injustiças e para sermos ‘pacientemente impaciente’”, conta. Entre as metas da nova presidenta da organização, está a de garantir a permanência e expansão das cotas raciais nas instituições educacionais do País.   

De família mineira, Antonia relata que seus ensinamentos antirracistas vieram de casa. Na adolescência, revela, leu “Quarto de Despejo”, obra de Carolina Maria de Jesus, que se tornou uma das referências literárias em sua formação e inspiração para a sua luta de combate ao racismo.  

Confira abaixo a entrevista da presidenta à coluna Geledés no debate.  

Geledés – Conte-nos um pouco sobre sua história de vida.

Eu e meus irmãos nascemos em São Paulo. Meus pais vieram de Minas Gerais logo depois do casamento, buscando encontrar aqui melhores condições de trabalho e de salário. Eu nasci no bairro do Ipiranga, mas sempre morei no Jabaquara, onde ainda hoje tenho muitos parentes e amigos.  

Geledés– A sua educação familiar influenciou sua formação antirracista? Se sim, de que maneira?   

A educação que recebemos na infância é fundamental para a nossa formação. Eu sou o resultado dos valores e dos exemplos que recebi dos meus pais, principalmente da minha mãe e das minhas avós. Como neta mais velha, era afilhada da minha avó materna, que me ensinou a importância de valorizar os mais velhos, ajudar os mais necessitados e respeitar todas as pessoas sem qualquer distinção.   

Geledés– Em qual momento de sua vida passou a fazer parte do movimento antirracista e como isso se deu?   

Acredito que sempre tive esse posicionamento. Conheço muitas pessoas que são combativas e que no seu cotidiano tomam decisões que contribuem para a luta antirracista, mesmo não participando formalmente de algum movimento. A luta antirracista é um legado que recebemos e temos o dever de dar continuidade, principalmente neste contexto de agravamento das desigualdades que atingem de maneira mais cruel a população negra.  

Geledés – Quais são suas referências na luta de combate ao racismo e sexismo e de que forma elas passaram a influenciar suas práticas?   

Todas as minhas parentes que me ensinaram a importância da resistência coerente e combativa. Na adolescência li “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Foi muito impactante conhecer a história dessa mulher negra e perceber a magnitude do racismo arraigado na nossa sociedade e de que maneira as desigualdades e as injustiças podem atentar contra a dignidade e a cidadania. Tiveram um papel fundamental na minha formação antirracista, os textos, artigos e obras de Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Jurema Werneck, Alzira Rufino, Cida Bento, Djamila Ribeiro, entre outras. Aliás, o novo livro sobre Sueli Carneiro: “Continuo preta”, lançado recentemente pela Companhia das Letras será a minha próxima leitura.  

Geledés é uma organização que se posiciona com muita firmeza em defesa das mulheres e dos negros e contra todas as formas de discriminação que limitam e restringem a cidadania.  

 

Geledés – Como foi o seu primeiro contato com o Geledés e como vê a trajetória da organização em seus 33 anos de existência?   

Conheci o Geledés no final dos anos 90, logo após a conclusão do meu doutorado. Trata-se de uma trajetória marcada pelo pioneirismo de dar visibilidade e colocar em pauta as especificidades do feminismo negro, projetos arrojados e muito sucesso. É uma organização que se posiciona com bastante firmeza em defesa das mulheres e dos negros e contra todas as formas de discriminação, que limitam e restringem a cidadania. Os diversos prêmios nacionais e internacionais demonstram a integridade, a força e a vitalidade dessa história.  

Geledés– O que acredita ser essencial para a liderança de uma organização que combate o racismo e o sexismo como o Geledés?   

Uma das competências que considero mais importante e estratégica é saber trabalhar coletivamente e de forma colaborativa. Além dessas habilidades, parece-me igualmente necessário que uma liderança tenha empatia, ética, planejamento e escuta ativa, ou seja, a disponibilidade para ouvir atentamente as contribuições de todas e todos, mostrando sempre respeito e compreensão.  

Geledés – O que pretende realizar em sua gestão no Geledés?   

Pretendo dar a minha contribuição para a elaboração do Planejamento Estratégico, que já está sendo construído com muito zelo, muito cuidado e de uma maneira coletiva, buscando somar todas as contribuições das associadas, conforme a tradição das organizações afro-brasileiras.  

Outro objetivo é dar continuidade ao belíssimo trabalho realizado pela Maria Sylvia de Oliveira, que me antecedeu na presidência do Geledés e cuja gestão primou pela competência, seriedade e dignidade.  

Estamos no contexto da Década Internacional de Afrodescendente criada pela ONU que proclamou o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes. A Década apresenta três pilares: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento. Lutar pela implementação desses pilares, certamente se reveste de uma grande importância e significado.  

Geledés– Quais temas considera como urgentes para serem tratados no combate ao racismo e sexismo no País?    

Nós estamos no contexto da Década Internacional de Afrodescendente, criada em Assembleia Geral pela ONU (Organização das Nações Unidas) que proclamou o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes (resolução 68/237). A Década apresenta três pilares: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento. Lutar pela implementação desses pilares seria, certamente, uma grande contribuição.  

Geledés – Você é Coordenadora de Cursos de Educação Continuada do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.  Qual sua visão do ensino na era pós-cotas? O que precisamos avançar e de que forma, diante do atual cenário, não podemos regredir?   

Como pesquisadora e docente coordeno o Projeto de Pesquisa intitulado: “A Década Internacional de Afrodescendentes (ONU – Resolução 68/237) e a gestão da diversidade étnico-racial e de gênero nas organizações” que tem o apoio financeiro do Fundo Mackenzie de Pesquisa (MackPesquisa). Tenho também orientado vários trabalhos de conclusão de curso sobre o tema da Diversidade Racial nas Organizações e observado o crescente interesse dos alunos pela temática.  

Aliás, recentemente fui moderadora de um dos eventos da XIX Semana do CCSA que discutiu os impactos do pós-pandemia para a população negra e comunidades menos favorecidas e contou com a presença do Gilberto Costa, colíder do grupo de Diversidade Racial do Banco JP Morgan, membro da subcomissão de Diversidade da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e membro do Comitê de Diversidade da Associação Brasileira de Profissionais de RH. (19º Semana do CCSA – Impactos do pós-pandemia para a população negra e comunidades menos favorecidas – YouTube)   

Geledés – Você concluiu no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), a pesquisa internacional: “Relações Brasil-África: Aspectos Político-Estratégicos, Econômicos e Histórico-Culturais”. Conte-nos um pouco sobre esta pesquisa e seus resultados.  

Eu fiz parte do meu doutorado em Portugal. Por esta razão, morei em Lisboa durante um ano e neste período conheci muitas instituições e me associei a alguns centros de pesquisas. O projeto a que se refere teve como resultadoa publicação do livro “Brazil-Africa Relations Historical Dimensions and Contemporary Engagements”, lançado em maio de 2019 pela Editora James Currey no Reino Unido. Nesta obra sou a autora do sexto capítulo intitulado: “Africa in Brazil: Slavery, Integration, Exclusion”, no qual destaco as afinidades históricas e culturais que nos aproximam do continente africano e que ainda hoje não alcançou a devida visibilidade. 

Tenho orientado vários trabalhos sobre o tema da Diversidade Étnico-Racial nas Organizações e observado o crescente interesse dos alunos pela temática. 

Geledés – Você é autora do livro “Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo: 1870-1890)”, em que discute o papel das irmandades religiosas negras no século XIX como espaço de solidariedade, resistência cultural, religiosidade e identidade racial. O que podemos aprender com as irmandades sobre a resiliência, palavra tão em voga hoje? 

Este livro foi o resultado da minha dissertação do mestrado, no qual analisei a História da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, atualmente localizada no Largo do Paissandú, no período de 1870 a 1890. No doutorado continuei estudando as Irmandades, mas em outras regiões e período. A tese também foi publicada em 2002 com o título: Lá vem o meu parente: As irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (Século XVIII), ambos pela Editora Fapesp/Annablume. 

Esses estudos nos ensinam, entre outras lições, que em cada momento histórico, devemos nos posicionar com muita sabedoria e análise de contexto. As irmandades elaboraram estratégias de resistência, considerando as características da sociedade na qual estavam inseridas, por isso deve ser destacada a autonomia que se forjava na burla do poder constituído.   

As suas reivindicações significavam ameaças e eram vistas como tentativas de desestabilização social. Mas se a classe senhorial e as elites quiseram utilizar as irmandades como meio de controle e de integração dos negros, estas souberam subverter esta proposta inicial e transformá-las em um espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto racial.  

Geledés – O Brasil, em seu ápice da pandemia, sofreu a chacina de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, com 28 mortos, como parte de um genocídio sem fim da população negra do País. Como dar um basta a esta situação sistêmica de violência contra negros e negras para se evitar tragédias semelhantes?    

Manifestando a nossa indignação, inconformismo e exigindo o cumprimento da lei. Não está prevista na Constituição a autorização para torturas e execuções sumárias. Os relatos das testemunhas e as imagens que começam a circular são inqualificáveis e revelam que muitas abordagens não tinham como objetivo prender os supostos criminosos, mas eliminá-los.  É muito importante que todas as instituições e organizações da sociedade civil se mobilizem e se solidarizem com esta população majoritariamente preta, pobre, marginalizada, abandonada pelo poder público, mas que tem os mesmos direitos previstos nas leis, que devem alcançar todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação. Aliás, a Constituição brasileira de 1988 assegura que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei (Artigo 5º)”. Vamos exigir o cumprimento das leis. Estamos cada vez mais unidas, fortalecidas e atentas.

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