Banzo: Um estado de espírito negro

As palavras de origem africana que nos negros(as) conseguimos manter durante esses mais de quinhentos anos no Brasil – diáspora de desassossego e morte – para explicitarem sofrimento, ou mesmo algum estado de padecimento psicológico (efeito da escravidão e racismo) possuem, em muitas delas, significações filtradas, estranguladas. Signos que vão se tornando opacos quando entram no sistema linguístico da língua portuguesa, quando são transcritas no código escrito do colonizador. Podem perder o axé – a energia semântica e ancestre de sua significação original, africana. Uma dessas palavras que vamos nos ater aqui, e que ilustra um estado de espírito negro, é o banzo.

Por Davi Nunes no Duque dos Banzos

imagem do site Duque do Banzo

Banzo é uma palavra que, segundo Nei Lopes, no Novo Dicionário Banto no Brasil, tem origem na língua QUICONGO, mbanzu: pensamento, lembrança; e no QUIMBUNDO, mbonzo: saudade, paixão, mágoa. Para ele, “Banzo é uma nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil.” Nos dicionários oficias de língua portuguesa, os dicionários brancos, banzo é definido como saudade da África, ou como forma de adjetivação de pessoa triste, pensativa, atônita, pasmada, melancólica.

A melancolia parece ser a definição que solapa muitos desses dicionários. É uma associação apriorística com o banzo, que é visto como a melancolia negra. Freud no texto Melancolia e luto diz que ela se caracteriza por um desânimo abissal, doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo, além da perda da capacidade de amar. O banzo é mais que isso, conflui em si todas essas palavras em português que remete a um estado de desassossego na alma, convulsionadas por uma exterioridade de terror, morte, escravidão, tortura. É a síntese profunda de uma existência moída em dor por uma estrutura social, política e econômica aterrorizadora.

O banzo constrói o ser negro(a) macambúzio(a), um casmurro em zanga, que sente todo o terror da existência nesse chão suspenso e cheio de interdições que o colocaram.

Quando nos séculos da escravização um homem ou uma mulher negra engoliam um naco de barro para se suicidarem, eles buscavam sentir, no gosto da terra envenenada pela ferrugem do grilhão, a terra original a qual foi desterrado, saca? Aruanda era/é o sossego diante do desassossego do exilio torturador da diáspora, que era e é um solo movediço a engolir negros e negras até hoje.

O banzo não é melancolia, talvez seja como nos demostra o poema de Cruz e Souza, “Tristeza do infinito”, é uma ação de suspensão objetiva de uma existência atroz. Não era/é necessariamente o fim da vida, mas a manutenção de um estado de alma que não lhe fazia funcionar para uma estrutura de opressão. Um exemplo nítido disso é a loucura, enlouquecer na escravização minava a ordem, o louco era fogo ensandecido mesmo que fosse para a morte.

O banzo perpassa a história dos negros da diáspora, é um sentimento poderoso que implode e explode. Algumas explosões são arte heroica: o jazz, chorinho, blues e rap, outras são implosões a se perderem no buraco negro e plácido da existência, numa escuridão boa, consoladora, ancestral, ou mesmo no grito solitário de desespero e morte.

O banzo hoje é a cobra de vidro, o racismo, que invade o cérebro e explode em traumas a cabeça do intelectual negro(a) que já pensa em ir para Aruanda; é a mãe com o olhar perdido, pois teve seus dois filhos assassinados pelos gambes com mandíbulas espumantes em sangue.

O banzo é a antítese heroica da vitória, a pistola apontada na cabeça e o riso desesperador do suicida; o mergulho no mar, na Atlântida Negra, perdida no fundo do oceano, pois o navio negreiro é a morte do corpo negro sequenciada nos séculos futuros. É o sangue no olho do menino preto que vai morrer homem. Caralho. É a cabeça de Eternit e o tiro zumbido no ouvido tranquilamente. É o pessimismo de Machado de Assis, o desespero lírico de Cruz e Sousa, o expressionismo mentalista de Basquiat, o inebriar etílico de Lima Barreto. É gênio e morte, mas não é a morte do gênio negro, entende? É o núcleo atômico de um sentimento que se desenvolveu no processo de escravização, e ainda hoje é um estado de espírito ao mesmo tempo aterrorizador e poderoso, uma transcendência diante dos traumas seculares.

O banzo, assim, é fim para o começo, embate mentalista introspectivo que move o mutuê, a cabeça, para uma dignidade existencial que se estende além da vida – a ancestralidade. Por isso é força angustiante, uma instancia desesperadora, uma dor insubmissa às opressões.

 

Davi Nunes é mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista.

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