Camila Moura de Carvalho: Por que o feminismo negro?

“A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

o ontem – o hoje – o agora .

na voz de minha filha

se fara ouvir a ressonância

o eco da vida -liberdade.”

(Conceição Evaristo)

 

Quem sou eu essa mulher negra?

Tal indagação – que não é meramente retórica – abre um portal de infinitas possibilidades de respostas e de outras tantas perguntas para cada uma de nós.

Esse pequeno ensaio sobre a condição da mulher negra foi se construindo em torno de duas perspectivas: uma inicial, de caráter mais ontológico ou existencial e outra que se ancora em torno de mitos da mobilidade social, em um contexto mais geral.

Sabemos lá no fundo que em algum momento de nossa existência, nos foi revelada nossa condição de mulher e de negra. Em algum momento o encanto se quebrou (encanto de ser quem se é) e fomos sexualizadas, racializadas, classificadas e assim marcadas para todo o sempre. Essa dupla de descobertas é personalíssima e não necessariamente ocorre de forma simultânea, sobretudo, creio eu, quando se trata reconhecer-se como negra. Na minha experiência, por exemplo, primeiro veio a descoberta de que eu era uma mulher e só depois de muito tempo me entendi e me reconheci como negra.

Podemos então iniciar essa conversa com a seguinte reflexão: a condição da mulher negra pode ser definida como uma posição de não ser, um lugar de completa ausência, ou melhor: de dupla ausência, na medida em que tal mulher não é um homem e também não é uma branca. Essa mulher, portanto, não exerce papel de centralidade nem no contexto do patriarcado, nem no da branquitude e a partir desses lugares, portanto, ela é duplamente periférica, socialmente rarefeita.

Assim é que a mulher negra vai performar o lugar de outra de outro/as (Grada Kilomba), absolutamente apagada, onde não há espaço sequer para a outridade (ou alteridade), que a mulher branca, por exemplo, experimenta em relação ao homem branco (como muito bem explica Beauvoir, em sua obra sempre atual “O Segundo Sexo”).

Desse modo, a combinação do racismo com o sexismo/machismo produz para as mulheres negras um efeito particularmente perverso e distinto, se comparado aos efeitos do racismo que é dirigido ao homem negro e do sexismo/machismo que se volta contra a mulher branca.

É dessa problemática – acrescida pelo elemento classe – que feministas negras como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro vão tratar quando desenvolvem o conceito de interseccionalidade. Carneiro nos ensina muito bem que o feminismo negro nasce justamente da incapacidade dos movimentos negro tradicional e feminista liberal de darem conta das demandas específicas das mulheres negras.

Isso porque nós somos atravessadas pelos marcadores de gênero, raça e classe os quais resultam numa combinação única de: opressão, exploração, invisibilização, violência e exclusão. Essa transversalidade cortante de direitos fundamentais é flagrante e se reflete de diversas formas: no mercado de trabalho, no sistema de saúde pública, na educação, no sistema de justiça, na forma de estabelecimento das políticas públicas, etc.

Apesar dos avanços sociais experimentados nas últimas décadas – sobretudo com as ações afirmativas e as políticas de cotas universitárias -, os padrões de desigualdades ainda permanecem na sociedade brasileira que é caracterizada, dentre outros aspectos nefastos, por uma rígida hierarquia de classes.

A partir de uma perspectiva econômica e social, por exemplo, o lugar da mulher negra permanece sendo na base da pirâmide, o que lhe confere um lugar de paralisia dentro dessa estrutura, um imobilismo que Carneiro vai chamar de “asfixia social”.

Gonzalez, ao falar sobre a formação econômica no Brasil e a força de trabalho da mulher negra, pondera que “na medida em que existe uma divisão racial e sexual do trabalho, não é difícil concluir sobre o processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e sexo), assim como seu lugar na força de trabalho” (“Por um feminismo afro-latino-americano”, Organização Flávia Rios e Márcia Lima, Ed. Zahar).

A articulação desses diferentes mecanismos de opressão entre si, explica em grande medida porque as principais mudanças que ocorrem no mercado de trabalho devido às conquistas dos movimentos feministas do século XX privilegiaram e permanecem privilegiando mulheres brancas. Esse fenômeno, evidencia o racismo e o efeito que ele produz sobre as mulheres negras, na medida em que elas são impedidas de serem igualmente beneficiárias das mesmas conquistas.

Especificamente quanto ao mercado de trabalho e apesar das conquistas, é inegável. como regra geral, que as mulheres negras continuam sendo posicionadas em atividades manuais e em funções subalternas, com os menores salários e sem oportunidade a cargos mais elevados, o que estabelece concretamente uma reserva de mercado em favor das mulheres brancas, após o atendimento dos privilégios masculinos.

Somos avis rara em altos postos de trabalho, cargos de comando, profissões de prestígio. Na Magistratura, por exemplo, o próprio CNJ em 2018 apresentou consistente pesquisa sobre o perfil sociodemográfico de magistrados e magistradas brasileiras, evidenciando percentuais baixíssimos de membros autodeclarados pretos e pardos e dentro desse universo um número ainda mais reduzido de mulheres, o que corrobora a faceta da exclusão específica que acomete as mulheres negras.

Voltando à questão da “asfixia social”, é preciso reconhecer que as lacunas deixadas tanto pelo movimento feminista de matriz branca, quanto pelo movimento negro precisam ser preenchidas e a problemática que nos é apresentada pelas pensadoras feministas negras é mais do que legítima: é necessária e urgente para estabelecer um novo marco civilizatório na sociedade brasileira.

E por isso é insuficiente se limitar apenas ao movimento de se opor; é preciso ir além e preencher esse espaço vazio com ação nova, genuína. Por isso se diz que não basta ser contra o racismo, o sexismo, o classismo etc; é preciso transpor a mera resistência e fazer algo; tornando-se sujeito de uma nova ação.

Para além de um propósito de cura e de insurreição, o desejo que move essa escrita coincide exatamente com a travessia que Grada Kilomba lindamente nos descreve quando fala do ato de tornar-se sujeito: “essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político” e que “representa esse desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (“Memórias de Plantação, episódios de racismo cotidiano”, Ed. Cobogó).

De outro lado, é preciso reconhecer que estamos experimentando uma conjuntura de protagonismo de pensadoras feministas negras contemporâneas de alta qualidade. Isso se deve muito à inestimável contribuição teórica, política e à pujança intelectual de pensadoras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, entre outras muitas atuais. Esse protagonismo é legítimo e necessário para a construção de conhecimento e prática verdadeiramente capazes de reconhecer as questões e demandas que cercam o universo da mulher negra brasileira e estabelecer novas balizas, mais emancipatórias para todxs.

Também é preciso reconhecer as iniciativas de grandes empresas privadas no estabelecimento de políticas de cotas em postos de trabalho mais elevados para pessoas negras. Para além dos aspectos socialmente justos e politicamente corretos, tais iniciativas também tem o interesse e o poder de se traduzirem em ganhos na imagem e valorização comercial dessas empresas e não deixam de ser válidas, na medida em que ganham todos os envolvidos.

Longe de ser uma panaceia para todas as mazelas sociais – por óbvio -, é preciso louvar as conquistas e explorar as potencialidades do feminismo negro como pensamento e prática emancipatórios, inclusive que transcendem a categoria da mulher negra para alcançar outras minorias socialmente vulneráveis (LGBTQIA+, mulheres indígenas, etc) e fugir da armadilha em que muitos movimentos sociais acabam caindo, que é a de reproduzir dentro de sua lógica novas formas de opressão.

Por isso, é tão importante fazermos ecoar a nossa voz, estimulando o debate, a reflexão e a articulação de ideias e ações que possam contribuir para a construção e fomento de políticas públicas e ações específicas voltadas para a problemática da mulher negra e também dos demais grupos socialmente excluídos e/ou vulneráveis.

Nesse sentido, podemos vislumbrar uma chave, uma conexão entre esse novo marco civilizatório almejado e a mobilidade social da mulher negra. Tal mobilidade constitui um excelente termômetro; já que a mulher negra, pela sua posição estrutural, não apenas está exposta às mazelas a que está submetida a branca – e que ninguém desqualifica – mas às mesmas mazelas de forma crônica e agravada por condições históricas específicas.

Em suma, é crucial a reparação de tais injustiças, pois na medida em que a mulher negra compõe a base da pirâmide social brasileira, quando ela se movimenta toda a estrutura se movimenta junto.

 

Camila Moura de Carvalho é juíza do Trabalho no TRT-15ª Região-Campinas-SP, membra da ADJ.

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