A camisa do cientista e o estuprador científico

O cientista punheteiro e o estuprador científico

Uma amiga minha – mulher, ativista e inteligente – posta reclamando do que seriam excessos feministas: a campanha (bem sucedida) para barrar a vinda de Julien Blanc, e a polêmica em torno da “camisa do cientista” – a camisa com estampa de mulheres seminuas que o dr. Matt Taylor escolheu para aparecer diante do mundo.

Para quem não acompanhou: Julien Blanc é um estuprador fanfarrão (se é só teórico, não sabemos), que dá workshops sobre submissão feminina, física e psicológica. O anúncio da sua vinda ao Brasil provocou uma onda de protestos virtuais, o que fez o Itamaraty responder que ele terá o visto negado.

O inglês Matt Taylor é um dos chefes da ESA – Agência Espacial Europeia, que conseguiu pousar o robô espacial Philae na superfície do cometa 67/P Churyumov-Gerasimenko. Uma vitória científica e tecnológica (eu, particularmente, não consigo me entusiasmar muito com essas coisas, mas é consenso que foi bastante importante). Acontece que, durante a missão, e logo depois, em entrevistas, ele estava usando uma camisa com estampa de mulheres seminuas.

Para frustração de Matt e da equipe, uma das maiores repercussões nas redes nos dias seguintes foi sobre… sua camisa. Numa entrevista de balanço dos dez anos da missão Rosetta, a primeira declaração foi um choroso e constrangido pedido de desculpas. Comentaristas jornalísticos e científicos publicaram textos irritados, por um assunto aparentemente “menor” ter eclipsado um feito memorável.

Mas a culpa é do próprio Matt. Sua maneira de comemorar a missão, e de aparecer em público, poderia ter sido mais sóbria (ele também se tatuou com uma imagem do que seria o pouso da sonda). Se não foi machista (na verdade sua camisa foi feita por uma amiga), o doutor foi bastante ingênuo. Um virjão. Chegou a declarar, após a missão, que sempre tinha dito que ela “seria sexy, a missão mais sexy de todas, mas não que seria fácil”.

É um nerd nerdando. Acha que o espaço, tal como as mulheres, é um objetivo de dificil aproximação, para a qual há que desenvolver tecnologias complexas. E que será reconhecido pela façanha (pelos seus pares – já que o seu objetivo afetivo provavelmente é visto como um ser inerte como um corpo espacial). O dr. Matt acha a sua missão a mais sexy, mas certamente ele mesmo não surgiu nada sexy aos olhos femininos.

Já o suiço-americano Julien Blanc não é um cientista machista e/ou ingênuo, mas quer ser o cientista sabichão do machismo. Ele ensina “sedução” – se você estiver pronta/o para admitir que seduzir pode incluir não aceitar um não como resposta, beijar mulheres à força apertando-as pelo pescoço e sufocando-as, e coisa pior.

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Julien afirma que um homem branco pode “fazer o que quiser. Eu ando pelas ruas pegando as cabeças das meninas e colocando no meu pênis”, no registro de um workshop no Japão. Julien e seu “curso” foram expulsos da Austrália, e banidos do Reino Unido. Em função do anúncio de sua vinda ao país em janeiro, uma petição foi encaminhada para a polícia federal brasileira, e deu resultado. O Itamaraty anunciou que uma circular instruirá a negativa a um pedido de visto.

Na segunda-feira passada, em entrevista à CNN americana, Julien também tentou se desculpar. Disse que eram apenas tentativas bem-humoradas que foram tiradas de contexto. Mas seu objetivo de transformar homens tímidos em machos alfa – ou no mínimo de conseguir-lhes um relacionamento – não se distingue em nada da cultura do estupro.

O que eu responderia à minha amiga, sobre supostos exageros feministas: se um cientista importante e um palestrante nem tanto se sentem tão à vontade para agir publicamente sem o menor pudor em relação à sensibilidade feminina, é porque viemos numa bolha machista. Na verdade é uma bolha de percepção patriarcal, na qual a natureza, incluindo as “fêmeas da espécie”, é um playground para a fantasia masculina.

O que o nerd e o estuprador acham sexy é meramente exibicionismo masculino – de homem para homem. As fêmeas que sejam conquistadas (no sentido predador do termo) por suas tecnologias de abordagem, e não envolvidas em algum jogo de igual para igual. Nesse sentido, o cientista punheteiro e o estuprador “científico” são apenas as duas faces da mesma moeda: o homem. Esse exagero de abuso.

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