Carolina do Brasil

Antes da internet com seus blogs, redes sociais, aplicativos era extremamente difícil expressar para o público a própria voz. As pessoas tinham o que dizer, mas não havia canais simples, baratos e democráticos. Daí o pessoal fora da cereja econômica, social, cultural tinha mínima chance de ser ouvido. Em tal configuração editores, colunistas e repórteres detinham o privilégio de peneirar o que aparecia.

Por Fernanda Pompeu Do Yahoo

Em 1958 o jornalista Audálio Dantas deu grande contribuição às letras pátrias ao revelar um talento literário escondido na favela paulistana do Canindé – arredores do Estádio da Portuguesa. Audálio estava escrevendo reportagem sobre a favela às margens do rio Tietê, quando ouviu uma mulher repreender uns marmanjos brincando no parquinho: Se vocês não caírem fora, vou botá-los no meu livro. A palavra livro acendeu um farol na cabeça do repórter.

Ele foi até o barraco da moradora e encontrou um mar de manuscritos. Catadora de papel, ela separava revistas e cadernos velhos para escrever nos espaços em branco observações, narrar histórias próprias e inventar muitas outras. Dois anos depois da descoberta feita por Audálio foi publicado Quarto de Despejo – que se tornou best-seller. Vendeu no total 80 mil exemplares.

O talento respondia pelo nome de Carolina Maria de Jesus. Nascida em 1914 na mineira Sacramento, ela ofertava num primeiro olhar as condições de migrante, negra, pobre, mãe solteira de três filhos. Uma Carolina entre milhares, uma Maria entre milhões.

Mas por trás do aparente, havia a escritora madura na observação do cotidiano da favela, da negritude, do universo feminino. E principalmente, como ocorre com grandes escritores, Carolina foi tradutora da alma humana para além das circunstâncias sociais e econômicas.

A partir da publicação do Quarto de Despejo, ela ficou famosa. Como ocorre no Brasil a fama lhe rendeu inimigos. A escritora também pagou o preço por não permitir que a rotulassem ora como escritora social, ora como autora alienada. Como Clarice Lispector foi Clarice Lispector, ela era antes e depois de tudo Carolina de Jesus.

Morreu em 1977, esquecida pelas editoras e pela mídia. Mas jamais deixou de escrever – mesmo quando teve que voltar a catar lixo. Hoje, a partir de várias iniciativas, a literatura de Carolina voltou à baila. Tomara que não seja ocultada novamente. Merecemos ler Carolina Maria de Jesus Brasil.

+ sobre o tema

Bianca Santana e a pergunta urgente: quando o movimento negro convoca atos, quem vai?

A escritora, jornalista e pesquisadora Bianca Santana, convidada do BdF...

Para além da “perspectiva do alpendre”

Buscar, nas representações da cidade, aquilo que não se...

Moda é documento e esta mulher faz fina “arqueologia” da indumentária negra

Hanayrá Negreiros é uma mulher que ilumina com a...

7 divas e seus cabelos crespos: por que eu amo meu cabelo 4C?

Nos últimos anos, em vários países do mundo, se...

para lembrar

Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora – Regional Cono Sur

Conmemoramos 26 años de encuentros, luchas y resistencias; sueños...

“Meu psicólogo disse que racismo não existe”

Depoimentos de pacientes revelam que muitos psicólogos não sabem...

Modelo negra é condenada por assalto, apesar de provar que não estava na cidade

Apesar de apresentar provas sobre sua inocência, a modelo Bárbara Querino...

Mulher, negra e feminista: conheça a nova vice-presidenta da UNE

Moara Correa Saboia teve uma trajetória meteórica no movimento...
spot_imgspot_img

Tina Turner: 10 dos maiores sucessos da lenda da música

A cantora Tina Turner, que morreu nesta quarta-feira (24/05) aos 83 anos, criou muitos clássicos com sua combinação de R&B, funk, rock e pop,...

Morre Tina Turner, cantora considerada a rainha do rock’n’roll, aos 83 anos

Morreu nesta quarta-feira, dia 24, a cantora Tina Turner, aos 83 anos. A morte foi confirmada por um assessor da cantora. A cantora morreu em casa,...

Livro de Sueli Carneiro mostra que racismo opera pelo Estado e por práticas sociais

Sueli Carneiro inicia sua obra do lugar de escrava. Do espaço reservado aos negros excluídos da "rés(pública)", que vivem na condição de não cidadãos. É...
-+=