Carta do GT Combate ao Racismo Ambiental da RBJA em apoio ao Povo Kaiowá-Guarani da Terra Indígena Laranjeira Nhanderu, Mato Grosso do Sul

 

As organizações e pessoas que compõem o GT Combate ao Racismo Ambiental da Rede Brasileira de Justiça Ambiental nos manifestamos frente à sociedade brasileira e nos dirigimos diretamente às autoridades, nacionais e internacionais, para que, no cumprimento das Constituição e dos acordos internacionais assinados pelo Brasil, não mais se permita que o povo indígena Kaiowá-Guarani continue a ter seus direitos à existência material, física, cultural e simbólica violados pelos interesses de empresários e fazendeiros que, em nome da apropriação privada da terra e do território, reinventam e aplicam as velhas violências que historicamente marcam a vida dos povos originários no País.

Não é novidade para grande parte da sociedade o fato de que os povos indígenas têm sido, ao longo da história do Brasil e da América Latina, considerados e tratados como seres inferiores, exóticos e selvagens. Postura social que, aliada e vinculada aos interesses do mercado, tem logrado um constante processo de massacres e extorsões não só dos indígenas, como das comunidades tradicionais e negras, para que o projeto de expansão e dominação econômica, política e cultural racista e patriarcalista seja consolidado.

É nesse contexto, e considerando a atualidade dessas violências, que nos reunimos e nos organizamos numa luta cotidiana contra as injustiças sociais e ambientais e contra o racismo e o etnocentrismo que, incrustados na nossa sociedade, estruturam as instituições e as relações sociais. Entendemos que as desigualdades étnicas e raciais são fatos na vida cotidiana e rebatem nos processos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais, gerando, aprofundando e reinventando diferentes formas de opressões e desigualdades que resultam em mortes, dores e sofrimentos para as populações indígenas e negras.

Por isso, temos todos os motivos para nos solidarizar e apoiar a luta do Povo Kaiowá-Guarani da Terra Indígena Laranjeira Nhanderu. Por isso apoiamos e participamos da criação do Comitê Nacional de Defesa dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul (CONDEPI) e nos aliamos a todos os militantes e organizações que apoiam a luta indígena. Por isso, também, reconhecemos e elogiamos a coragem e a luta de integrantes da Defensoria e do Ministério Públicos, da OAB/MS e da FUNAI para que essa comunidade seja justiçada nos seus direitos e necessidades humanas.

No entanto, gostaríamos de propor à sociedade e às autoridades que, ao se debruçarem sobre essa questão, realizassem o que poderíamos chamar um rápido exercício de gentileza e respeito: imaginemos que por diversas vezes nossas famílias e pessoas de nossa convivência, nossos “parentes”, com quem partilhamos afetos, alegrias, festas e tristezas, tenham sido expulsas de nossos espaços. Imaginemos que isso tenha ocorrido por meio de uma violência que não se encerra na dimensão física imediata, mas inclui a violação de terem sido jogados no espaço dos sem lugar, sem coisas, sem casa, sem rede, sem cadeira, sem panela, sem lençóis, sem comida, sem tudo.

Imaginemos todos os nossos pertences sendo queimados. Imaginemos que 60% dessas pessoas sejam crianças, e que frequentemente as vejamos mortas sob as rodas dos caminhões que passam na beira da rodovia federal onde estamos sendo obrigados a viver sob lonas e em situação insalubre. Imaginemos nossos escritórios queimados, como se queimam os roçados indígenas; nossos animais de estimação e de criação mortos na nossa frente. Imaginemos nossas famílias, os idosos e as crianças sem cuidados médicos, porque aqueles que nos roubaram não permitem o acesso a eles. Imaginemos que, tendo as nossas casas e objetos destruídos, nossas vidas e as de nossos vizinhos ameaçadas, ainda somos obrigados a ver nossos dominadores e seus jagunços passarem à frente da nossa desgraça, a cada dia, a nos dizerem que nosso destino é a morte. E que mesmo desse espaço à beira da estrada ainda nos queiram expulsar.

Imaginemos o quanto isso abalaria nossa estrutura psicológica, nossos medos aflorados, nossas dores expostas dentro de nós e nesse território do nada. Imaginemos nossos adolescentes sucumbindo ao desespero da falta de saída e se suicidando aos dez, doze anos de idade…

Agora, pensemos que muitas pessoas sabem disso. Que diversas autoridades, que deveriam ser responsáveis pelo bem estar de todos e todas, têm conhecimento e até eventualmente testemunham isso. Será que não nos revoltaríamos? Não nos perguntaríamos por que meu povo não está sendo considerado, por que estamos nessa situação, o que fizemos para merecer tanta humilhação e desprezo? Quem não reagiria, nessa condição? Quem não iria querer lutar por sua vida e suas coisas, mesmo contado só com aquilo que lhe resta, que são a força e a sabedoria de se organizar e ocupar para fazer valer, na retomada de quem sabe que, se nada fizer, nada terá.

Como sabemos, essa não é uma história fantástica. Lamentavelmente, ela é real e cotidiana, quer na vida desse Povo, quer na de inúmeros outros indígenas e quilombolas do Brasil. Observe-se que os Kaiowá-Guarani sequer reivindicam todo o território ao qual de fato teriam direito. Nas atuais circunstâncias, lutam apenas pelo acesso à Reserva Ecológica obrigatória existente em meio à imensidão da soja tóxica plantada nas terras que lhes foram roubadas. Mas mesmo isso lhes está sendo negado.

Para o GT Combate ao Racismo Ambiental, a situação dos Guarani-Kaiowá é um reflexo de uma racionalidade criminosa que acomete uma sociedade eticamente doente. E não só: que faz também adoecer, com sofrimentos que são considerados e tratados com pesos e medidas diferentes e desiguais, dependendo da cor, da etnia, da raça, da classe e do gênero.

Na visão hegemônica, sofrimento de índio não comove, ou só comove aos demasiado românticos. Justiça para índio é atraso. Povo indígena com direito é entrave ao desenvolvimento. Maternidade indígena é animal. Infância indígena é ameaça ao futuro desenvolvido. Idosos indígenas são estorvos de ninguém. Território indígena é terra a ser saqueada. Cultura indígena é folclore insignificante e passageiro. Simbologias, tradições e crenças indígenas são a infância do mundo; a ausência de deus.

Não é à toa que, mesmo com os avanços conquistados pelas lutas sociais no reconhecimento das perdas e usurpações que atingiram e atingem os povos originários, as leis nacionais e internacionais deles consequentes ainda não garantam aos indígenas a justiça e o direito à existência e à vida digna.

Para nós – e isso deveria ser uma questão óbvia para a sociedade e as autoridades brasileiras -, é significativo que todos os esforços da comunidade, da sociedade civil organizada, do Ministério e da Defensoria Públicos e da própria FUNAI não tenham sido suficientes para que o sofrimento pelo qual vem passando o povo Kaiowá-Guarani seja considerado e tratado a partir daquilo que seria humanamente óbvio: o direito ao território, o exercício do respeito e a garantia de condições de vida dignas.

Ao contrário disso, em nome dos interesses de ruralistas, pecuaristas e monocultores, as necessidades e os direitos da comunidade indígena são transformados em questão técnica e burocrática, situada no campo de códigos institucionais que não fazem parte da experiência dos povos a não ser em termos de opressão e subordinação. O território que antes acolhia agora é mera terra onde só se pode viver na medida em que se atende aos interesses, linguagens e determinações do outro, dos superiores e donos legítimos do poder.

Entendemos que, desde a era colonial (se é que ela de fato terminou), os povos indígenas foram vitimados pela violência dos diferentes colonizadores, na sua ânsia de acumulação. Essa herança histórica hoje se corporifica numa sociedade burguesa e numa falsa democracia branca, forjadas por ideais e interesses capitalistas que se refletem em múltiplas formas de genocídio, com o aval ou mediante a omissão das instituições e dos poderes públicos. Podres poderes, nos quais povos indígenas não têm representação, não são devida e efetivamente reconhecidos como sujeitos políticos, sequer são tratados como pessoas – com valores, crenças, tradições, trabalho e todas as dimensões que marcam a existência dos seres humanos e das sociedades.

Nessa sociedade perversa e criminosa, as instituições e autoridades têm sido, em sua imensa maioria, incapazes de decidir e de aplicar com justeza aquilo que é básico e sequer necessita de maior uso da inteligência ou sentimentalismo, mas apenas da obviedade da dignidade humana. Uma obviedade no entanto constrangida pelas impossibilidades, protelações e empecilhos colocados em cena: uma cena burocratizada e judicializada para que aquilo que é racionalmente básico não seja reconhecido e até exigido pela nossa inteligência.

Para nós, o caso do povo Guarani-Kaiowá e de muitos outros povos indígenas não é apenas questão de institucionalidade, de debate e de trabalho técnico. Trata-se do que deveria ser a obviedade da justiça humana, impedida de existir pelas institucionalidades dominadas, patriarcalistas, racistas e entregues aos interesses do capital e da propriedade privada, cujos agentes e representantes sequer precisam ter escrúpulos, disfarçar ou negar seus interesses, sua injustiça, sua irracionalidade e sua violência. Seus excessos são justificados na medida em que portam o progresso; seus interesses devem ser os interesses de todos e todas; suas violências são apenas inerentes à sua “humanidade” dedicada ao desenvolvimento, mola mestra de nossa vergonhosa sociedade hierarquizada, higienista, assassina e omissa às suas próprias inconsequências, eticamente incapaz de avaliar os efeitos de suas injustiças.

Ontem, 7 de fevereiro, foi o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, instituído em memória do assassinato do índio Guarani Sepé Tiaraju, herói da resistência da “República Guarani”. O número da Lei é 11.696, e ela foi assinada pelo Presidente da República em 12 de junho de 2008, há quase quatro anos. Devemos considerá-la um deboche limitado à História? Que nome se pode dar a uma lei que homenageia exatamente a luta de um povo que se está permitindo seja exterminado?

Nós, que combatemos o racismo ambiental e todas as injustiças que têm se agravado sobre os povos e comunidades tradicionais, não podemos silenciar: indignar-se é preciso, denunciar é essencial e agir é condição para transformar! Por isso, enquanto a justiça e os direitos não prevalecerem, sejamos todos e todas Kaiowá-Guarani!

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Componentes do GT Combate ao Racismo Ambiental

Entidades:

01. AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – Salvador – BA

02. Amigos da Terra Brasil – Porto Alegre – RS

03. ANAÍ – Salvador – BA

04. Associação Aritaguá – Ilhéus – BA

05. Associação de Moradores de Porto das Caixas – Itaboraí – RJ

06. Associação Socioambiental Verdemar – Cachoeira – BA

07. CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) – Belo Horizonte – MG

08. Central Única das Favelas (CUFA-CEARÁ) – Fortaleza – CE

09. Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) – Belém – PA

10. Coordenação Nacional de Juventude Negra – Recife – PE

11. CEPEDES (Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia) – Eunápolis – BA

12. CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores) Nacional

13. CPP BA – Salvador – BA

14. CPP CE – Fortaleza – CE

15. CPP Nordeste – Recife (PE, AL, SE, PB, RN)

16. CPP Norte (Paz e Bem) – Belém – PA

17. CPP Juazeiro – BA

18. CRIOLA – Rio de Janeiro – RJ

19. EKOS – Instituto para a Justiça e a Equidade – São Luís – MA

20. FAOR – Fórum da Amazônia Oriental – Belém – PA

21. Fase Amazônia – Belém – PA

22. Fase Nacional (Núcleo Brasil Sustentável) – Rio de Janeiro – RJ

23. FDA (Frente em Defesa da Amazônia) – Santarém – PA

24. FIOCRUZ – Pedro Albajar – RJ

25. Fórum Carajás – São Luís – MA

26. Fórum de Defesa da Zona Costeira do Ceará – Fortaleza – CE

27. FUNAGUAS – Terezina – PI

28. GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra – São Paulo – SP

29. GPEA (Grupo Pesquisador em Educação Ambiental da UFMT) – Cuiabá – MT

30. Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito: interações sociedade e meio ambiente, da UFBA – Salvador – BA

31. GT Observatório e GT Água e Meio Ambiente do Fórum da Amazônia Oriental (FAOR) – Belém – PA

32. IARA – Rio de Janeiro – RJ

33. Ibase – Rio de Janeiro – RJ

34. INESC – Brasília – DF

35. Instituto Búzios – Salvador – BA

36. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense – IF Fluminense – Macaé – RJ

37. Instituto Terramar – Fortaleza – CE

38. Justiça Global – Rio de Janeiro – RJ

39. Movimento Cultura de Rua (MCR) – Fortaleza – CE

40. Movimento Inter-Religioso (MIR/Iser) – Rio de Janeiro – RJ

41. Movimento Popular de Saúde de Santo Amaro da Purificação (MOPS) – Santo Amaro da Purificação – BA

42. Movimento Wangari Maathai – Salvador – BA

43. NINJA – Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (Universidade Federal de São João del-Rei) – São João del-Rei – MG

44. Núcleo TRAMAS (Trabalho Meio Ambiente e Saúde para Sustentabilidade/UFC) – Fortaleza – CE

45. Observatório Ambiental Alberto Ribeiro Lamego – Macaé – RJ

46. Omolaiyè (Sociedade de Estudos Étnicos, Políticos, Sociais e Culturais) – Aracajú – SE

47. ONG.GDASI – Grupo de Defesa Ambiental e Social de Itacuruçá – Mangaratiba – RJ

48. Opção Brasil – São Paulo – SP

49. Oriashé Sociedade Brasileira de Cultura e Arte Negra – São Paulo – SP

50. Projeto Recriar – Ouro Preto – MG

51. Rede Axé Dudu – Cuiabá – MT

52. Rede Matogrossense de Educação Ambiental – Cuiabá – MT

53. RENAP Ceará – Fortaleza – CE

54. Sociedade de Melhoramentos do São Manoel – São Manoel – SP

55. Terra de Direitos – Paulo Afonso – BA

56. TOXISPHERA – Associação de Saúde Ambiental – PR

Participantes individuais:

01. Ana Almeida – Salvador – BA

02. Ana Paula Cavalcanti – Rio de Janeiro – RJ

03. Angélica Cosenza Rodrigues – Juiz de Fora – Minas

04. Carmela Morena Zigoni – Brasília – DF

05. Cecília Melo – Rio de Janeiro – RJ

06. Cíntia Beatriz Müller – Salvador – BA

07. Cláudio Silva – Rio de Janeiro – RJ

08. Daniel Fonsêca – Fortaleza – CE

09. Daniel Silvestre – Brasília – DF

10. Danilo D’Addio Chammas – São Luiz – MA

11. Diogo Rocha – Rio de Janeiro – RJ

12. Florival de José de Souza Filho – Aracajú – SE

13. Igor Vitorino – Vitória – ES

14. Janaína Tude Sevá – Rio de Janeiro – RJ

15. Josie Rabelo – Recife – PE

16. Juliana Souza – Rio de Janeiro – RJ

17. Luan Gomes dos Santos de Oliveira – Natal – RN

18. Luís Claúdio Teixeira – Belém- PA

19. Maria do Carmo Barcellos – Cacoal – RO

20. Mauricio Sebastian Berger – Córdoba, Argentina

21. Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio – São Carlos – SP

22. Pedro Rapozo – Manaus – AM

23. Raquel Giffoni Pinto – Volta Redonda – RJ

24. Ricardo Stanziola – São Paulo – SP

25. Ruben Siqueira – Salvador – BA

26. Rui Kureda – São Paulo – SP

27. Samuel Marques – Salvador – BA

28. Tania Pacheco – Rio de Janeiro – RJ

29. Telma Monteiro – Juquitiba – SP

30. Teresa Cristina Vital de Sousa – Recife – PE

31. Tereza Ribeiro – Rio de Janeiro – RJ

32. Vânia Regina de Carvalho – Belém – PA

 

 

 

 

Fonte: Combate ao Racismo Ambiental

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