Casais negros aderem a relações afrocentradas

Para eles, relacionamento com alguém de mesma cor é ato político que blinda contra o racismo

Termo usado para designar uma união afetiva e/ou sexual entre pessoas negras, as relações afrocentradas têm ganhado espaço no Brasil. Nesse tipo de relacionamento, o foco do casal é na negritude e em seu posicionamento frente a questões etnico-raciais.

Para especialistas, existe intenção nas escolhas pela raça dos parceiros, que são orientadas também por fatores externos e históricos —o que inclui o racismo.

O conceito de relacionamento afrocentrado não é exatamente novo, mas o tema tem ganhado força nos últimos anos, afirma a historiadora Giovana Castro, 49. “Na minha geração, nos preocupamos em discutir a Constituição para garantir direitos à população negra. Isso ainda é forte, mas a contribuição atual também oferece caminhos para chegarmos à equidade.”

A produtora de conteúdo gaúcha Michele Nascimento, 29, e o carioca Maurício Ribeiro, 30, são um exemplo de casal que se enquadra neste tipo de relação. Para ela, o namoro entre eles é um ato político. “Não é só uma relação conjugal ou amorosa. É um ato de resistência fazer uma relação preta existir. Se um dia nós decidirmos ter filhos, vão nascer crianças pretas de pele retinta”, afirma.

Ela destaca ainda que ambos compartilham características não só físicas, mas de vivências. “Eu me conhecendo, me amando, sabendo da textura do meu cabelo, dos meus traços, como eu sou, reconhecendo a cor da minha pele, vou conseguir amar uma pessoa parecida comigo.”

Isso não os isenta de desafios. Para o casal, o maior deles é saber que compartilham a mesma dor. “Se o Maurício sofrer qualquer tipo de racismo, vai doer como se fosse em mim e eu vou querer justiça como se fosse comigo”, diz Michele.

O casal se conheceu durante uma festa voltada para o público negro em Porto Alegre, e logo engataram um relacionamento. “Quando a gente postava foto juntos, comentavam que nós éramos inspiração e fazíamos as pessoas acreditarem no amor afrocentrado”, afirma ela.

O incentivo levou a dupla a criar o perfil Mais um Casal Preto, que hoje soma mais de 100 mil seguidores no Instagram. Juntos há sete anos, eles compartilham conteúdos sobre estilo de vida, comida e moda na internet.

Vindos de famílias negras, ambos já namoraram pessoas brancas antes de se encontrarem, mas concordam que suas vivências são mais respeitadas no atual relacionamento. “Por mais que uma pessoa branca seja entendida ou estudada, alguma coisa vai passar. E é sempre nesses detalhes que acaba dando algumas confusões”, afirma Ribeiro.

Amar pessoas com a mesma cor de pele não é exclusividade de nenhuma raça no Brasil. Segundo pesquisa Datafolha, 15% dos brasileiros afirmaram que em todos os seus últimos relacionamentos amorosos os parceiros tinham a mesma cor de pele que a sua.

Entre os entrevistados, 30% disseram que a maioria dos últimos parceiros tinham a mesma cor de pele que a sua, enquanto 23% afirmaram que a minoria tinha a mesma cor de pele que a sua. Outros 24% estiveram exclusivamente em relações inter-raciais.

A pesquisa faz parte da série Afeto em Preto e Branco e foi realizada de 9 a 17 de outubro de 2023. O nível de confiança é de 95%, com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. O levantamento tem como base 2.005 entrevistas presenciais, realizadas em 111 municípios. Foram ouvidas pessoas de 16 anos ou mais de todas as regiões do país, com diferentes marcadores de gênero, raça e escolaridade, entre outros.

De acordo com o sociólogo Rhuann Fernandes, 27, o processo de colonização estabeleceu a emoção como uma qualidade inferior à razão e definiu de maneira arbitrária que pessoas negras eram mais suscetíveis a ela do que pessoas brancas.

“Essa foi uma das ideologias usadas para justificar a dominação de uma raça em relação a outra no Brasil”, afirmou. O pesquisador cunhou um termo para esse fenômeno, a colonialidade das emoções, que, segundo ele, continua afetando o país.

A publicitária Angelica Souza, 33, e o contador Fábio Rodrigues, 34, buscam apoio no relacionamento para enfrentar algumas situações. O namoro começou em 2021, e desde fevereiro eles moram juntos em São Paulo.

O casal Fábio Rodrigues, 34, (a dir.) e Angelica Souza, 33, (a esq.) durante viagem a São Luís (MA) – leitor da Folha (Imagem retirada do site Folha de São Paulo)

O relacionamento afrocentrado ajudou, por exemplo, que eles começassem a jogar tênis. Para o casal, o esporte é majoritariamente praticado por pessoas brancas, com pouco espaço para negros como eles. Por isso, o apoio um ao outro foi importante para conseguirem praticar.

“Nenhum dos dois tinha feito isso antes. Queríamos nos desafiar nesse universo”, afirma a publicitária.

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