Com racismo crescente, Itália vence Mundiais de Clubes com atletas negros

“Estou muito orgulhosa desse time e não queremos parar”. A frase, repetida nos principais jornais italianos, é da jovem oposta Paola Egonu, um dos maiores fenômenos do vôlei mundial na atualidade, em entrevista após a conquista do primeiro troféu do seu time, o Conegliano, no Campeonato Mundial de Clubes, em Shaoxing (China). A atleta de 20 anos não cansa de quebrar recordes e marcou assombrosos 38 pontos na semi contra o tricampeão VakifBank e 33 na final contra o bi Eczacibasi, potências turcas que se tornaram presenças constantes na competição.

E a festa italiana nesta edição não poderia ter sido maior. Afinal, o Lube Civitanova também venceu no naipe masculino, superando o tricampeão Sada Cruzeiro na decisão em Betim (MG). Letais no ataque e no saque, Osmany Juantorena e Yoandy Leal foram os destaques individuais do duelo, anotando 20 pontos cada.

Assim, exultantes, as publicações locais festejaram o fato de o país ter sido recolocado no topo no naipe feminino, uma vez que o último triunfo da Azzurra no Mundial aconteceu no longínquo 1992, quando o Ravenna venceu o brasileiro Minas Tênis Clube. Entre os homens, a última conquista foi a do Trentino, que chegou ao penta no ano passado.

Curiosamente, entretanto, as equipes triunfaram nesta edição do Mundial tendo atletas negros como protagonistas. Afinal, a italiana Egonu, o cubano naturalizado italiano Osmany Juantorena, o brasileiro naturalizado Yoandy Leal e o cubano Robertlandy Simon são alguns dos maiores craques da liga local de clubes, vista como a mais forte do mundo – Egonu e Juantorena ainda são peças indispensáveis à seleção. Sem falar em outros jogadores, como o polonês naturalizado León, que hoje brilha no Perugia, time que não participou da competição.

E todos eles são destaque justamente neste momento em que a extrema direita avança e as manifestações de racismo, xenofobia e intolerância atingem níveis aterrorizantes e inimagináveis em várias esferas do país, inclusive, no esporte. O que vem acontecendo há tempos no futebol, por exemplo, é uma demonstração evidente de que a situação está completamente fora de controle. A própria Egonu, conforme mostrado aqui no blog, já foi vítima do ódio racial, tendo, ainda, a sua nacionalidade questionada por ser descendente de nigerianos.

O jogador Leal- homem negro careca, usando uniforme do time - em pé durante uma partida
Leal vive um momento excepcional na carreira (Fotos: Divulgação/FIVB)

Sem fazer referência ao problema, as publicações locais se renderam ao talento dos atletas – o “Corriere Della Sera”, por exemplo, cravou “Egonu magnífica e Leal implacável: a Itália retorna ao topo do mundo”. O “Tuttosport” exaltou o trabalho realizado em conjunto pelo Civitanova na busca pelo troféu inédito, e escreveu “Juantorena e Leal comandam a equipe em direção à histórica vitória”.

Já o “La Gazzetta dello Sport” utilizou adjetivos como “gigantesca” e “superlativa” para se referir ao desempenho de Egonu. Foi bastante ilustrativo, contudo, perceber que apesar de todos os elogios, alguns torcedores colocaram o potencial da atacante em dúvida. Implacáveis nas críticas, afirmaram que ela não foi tão decisiva assim no Campeonato Mundial de seleções, em 2018, e na semifinal do Campeonato Europeu deste ano.

Para quem não lembra, a Itália foi superada pela Sérvia, da também espetacular Tijana Boskovic, nas duas oportunidades. No Mundial do ano passado, a equipe foi derrotada no tie-break. Já no Europeu disputado entre agosto e setembro, a Azzurra caiu por 3 a 1, terminando o continental com o bronze. O representante dos Bálcãs ficou com o ouro nos dois torneios.

Apesar das derrotas, Egonu mostrou o porquê é considerada uma das melhores atacantes do mundo. Na decisão do Mundial, ela marcou outros 33 pontos, além de ter anotado 45 na histórica semifinal contra a China, terminada também apenas no tie-break. Especificamente nesta semi, ela se tornou a maior pontuadora de toda a história dos Campeonatos Mundiais, ultrapassando a marca da cazaque Yelena Pavlova, que fez 40 no jogo em que sua equipe perdeu por 3 a 2 para os Estados Unidos, em 2006. Já na semi do Europeu, a jogadora pontuou 26 vezes, sendo o maior destaque ofensivo do jogo.

O jogador Juantorena- homem branco, alto, de pouco cabelo, vestindo camiseta do seu time- em pé comemorando durante uma partida
Um dos melhores jogadores do mundo, Juantorena fez uma grande partida contra o Cruzeiro (Fotos: Divulgação/FIVB)

O excesso de erros, no entanto, acabou comprometendo o rendimento do time nos dois confrontos. Talvez tenha faltado à Itália uma atuação mais consistente também por parte da jovem e talentosa levantadora Ofelia Malinov, que se equivocou na distribuição das jogadas. Além disso, o time careceu de maior efetividade no ataque por parte de outras jogadoras, dividindo com Egonu a responsabilidade na virada de bola.

Neste sentido, reconhecendo o poder de decisão da atleta e o fato de o vôlei ser um esporte coletivo, o “Corriere Della Sera” fez uma espécie de “mea culpa”, destacando que “Egonu recebeu mais críticas do que realmente merecia” e que ela foi uma “MVP indiscutível” neste Mundial de Clubes.

Indiscutível também deve ser o nível de apreensão com o qual esses atletas precisam conviver na Europa e, em especial, na Itália, sabendo que serão alvos preferenciais em qualquer circunstância, sobretudo se não derem resultado. Ainda que nem todos (ou poucos) se manifestem publicamente, não há dúvidas de que devem ser enormes os desafios cotidianos. O que se espera é que todos sigam em frente, jogando o seu melhor voleibol, sem medo das críticas, e que não se calem diante de qualquer forma de violência ou preconceito.

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