Como Gerson King Combo e seus bailes black tentaram implodir a democracia racial

“Dançar como dança um black! Amar como ama um black! Andar como anda um black! Usar sempre o cumprimento black”, cantava Gerson King Combo em sua música mais conhecida.

Os versos de “Mandamentos Black” —repetidos depois como grito de ordem por Marcelo D2 em “Qual É”, hit nos anos 2000— representavam ideais de toda uma geração. Nos anos 1970, o artista foi catalisador de uma cena conhecida como black rio, um marco na cultura brasileira.

Mas o que os tributos ao músico, morto no mês passado, não lembraram é como o abalo sísmico do movimento que ele capitaneou se deu à revelia das forças políticas da época. Tanto a direita, do regime militar, quanto a esquerda revolucionária viam com desconfiança a afirmação da identidade negra.

E, enquanto o militares e seus detratores tentavam sufocar essa onda, a black rio foi criando as bases do funk e do hip-hop nacionais, que se estabeleceram nos anos 1980 e 1990 e hoje estão entre os estilos mais ouvidos do país.

Na época de King Combo, a música negra americana faturava mais do que o rock britânico. Nas listas de mais vendidos, Stevie Wonder e Michael Jackson aparecem com mais álbuns vendidos do que bandas como Rolling Stones, Led Zeppelin, Pink Floyd e The Who.

Em paralelo, uma cena de soul brasileiro começava a surgir. “Estávamos curtindo a música americana”, diz o guitarrista Hyldon. “Era James Brown, Marvin Gaye, Jackson 5. Só que ninguém falava inglês. Era no ‘embromation’. Usamos uma levada de soul e começamos a tocar essa música brasileira.”

Segundo Luiz Felipe Gaoners, autor de “1976 – O Movimento Black Rio”, a influência ia além da música. “O que eles pregavam foi muito importante, essa valorização do fenótipo negro caiu como uma luva para os jovens negros daquele período.”

Jorge Ben Jor e Toni Tornado também já cantavam a autoestima negra em músicas como “Negro É Lindo” e “Mané Beleza”. Em 1971, Elis Regina gravou “Black Is Beautiful” e gerou reações negativas.

Em seu livro, Gaoners e Zé Octávio Sebadelhe, também autor da obra, lembram quando Tornado foi algemado num show de Elis no ginásio Maracanãzinho. Ele subiu ao palco, abraçou a cantora e levantou o punho em alusão ao gesto dos Panteras Negras e acabou levado à Polícia Federal para a primeira de cerca de 40 passagens pelo Dops, órgão de repressão da ditadura.

É nesse contexto que surgem os bailes black. Segundo Luciana Xavier, autora de “A Cena Musical da Black Rio”, eles estavam em sintonia com as festas populares nos subúrbios do Rio de Janeiro. “Havia um crescimento dos grupos de jovens negros que, na época, ensaiavam um consumo mais cosmopolita.”

Hyldon lembra que até as danças eram “black”. “Não tinha muita música ao vivo, era mais DJs. Alguns bailes eram especificamente de negros, e as pessoas iam muito bem vestidas, de terno, sapatinho bacana, calças boca de sino.”

Na década de 1970, o Rio tinha mais de 300 equipes de som. As mais famosas eram a Sound Grand Prix, de um agitador importante da cena, Dom Filó. Mas também havia a Furacão 2000, que se transformou numa das principais produtoras de funk nos anos 1990 e 2000.

Os bailes podiam reunir até 15 mil pessoas. O DJ Ademir Lemos, conhecido na época, dizia que esses eventos tinham uma renda “que Flamengo e Vasco não davam no Maracanã”.

Uma das consequências desse sucesso foi uma certa rivalidade entre o soul e o samba. Isso ficou claro na música “Sou Mais o Samba”, de 1977, em que Candeia diz que “para acabar com o tal de soul, basta um pouco de macumba”. Em “Goiabada Cascão”, de 1978, Beth Carvalho canta que “hoje só tem discoteca, só tem som de black, só imitação”.

Hyldon discorda. “Nunca tive briga ou desconforto, até porque as origens do soul e do samba são as mesmas. Havia caras mais radicais de MPB e bossa nova, que faziam música com muitos acordes. A gente fazia música para dançar e, se você começar a botar muito acorde, não tem suingue, não tem balanço.”

O conflito, no entanto, se dava na arena política. Enquanto a esquerda tratava o soul como um braço do imperialismo, a direita via como perigosas as manifestações antirracistas. “Tanto a esquerda quanto a direita tinham como ponto de convergência a ideologia da democracia racial brasileira, um elogio da mestiçagem”, diz Luciana Xavier. “Para a direita, os bailes e qualquer movimentação antirracista representavam uma ruptura da identidade nacional. Para a esquerda, os problemas de desigualdade eram motivados pela opressão de classe, e não pelo racismo, então a afirmação negra poderia atrapalhar a luta.”

Em sua biografia, André Midani —um dos principais executivos de gravadora no Brasil— conta que foi chamado até para depor à ditadura. Ele foi acusado de receber dinheiro da Warner americana, por meio dos movimentos black, para financiar a revolução dos negros nas favelas brasileiras.

Hyldon, Tim Maia e Cassiano foram grandes vendedores de discos nos anos 1970. Os bailes black eram comandados por DJs, que garimpavam raridades e novidades do soul americano, sendo que as equipes lançavam coletâneas com as músicas dos bailes. Esses discos são as bases das montagens, formato ainda hoje usado no funk.

Quando Gerson King Combo lançou seu primeiro disco, em 1977, a cena black do Rio vivia seu auge, e as ideias do movimento já haviam se espalhado por capitais como São Paulo e Salvador. Naquele ano, Gilberto Gil lançou “Refavela”, em que fala do movimento black, e disse que a crítica atacou o disco “por causa da atitude, que era black”.

A chegada da música disco, entre outros fatores, acabou transformando a cena dos bailes black no Rio dos anos 1980. Nem por isso, aquela movimentação deixou de ser sentida na cultura brasileira. Na verdade, ela está muito presente até hoje.

No final da década de 1980, o DJ Marlboro, pioneiro do funk carioca, começou a despontar nos bailes com uma estética eletrônica, influenciado pelo hip-hop americano. É nesse período que a figura do MC começa a se estabelecer, sendo Gerson King Combo um dos primeiros a cantar as melôs por cima das batidas dos DJs.

Em seu disco solo, de 2016, Mano Brown, dos Racionais MCs, gravou com Hyldon a música “Foi Num Baile Black”. Tributo à cena, a faixa evidenciou a importância do momento para o surgimento do hip-hop paulista. Tim Maia e Cassiano, entre outros pioneiros do soul, aparecem entre os samples dos primeiros discos dos Racionais.

“Havia um contato entre esses gêneros negros, como a ênfase em bases rítmicas, a estrutura de canto, o chamado e resposta, as estruturas de síncope”, diz Xavier, a pesquisadora. “É importante perceber que aquela juventude negra estava demandando novas formas de visibilidade. Os bailes se converteram numa arena para uma nova estética, que estava desafiando essas hierarquias raciais.”

 

 

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Fonte: Por Lucas Brêda, da Folha de S.Paulo 

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