Como nossos pais

Empatia e emoção não são incompatíveis com pensamento crítico

Na primeira — e única — vez em que assisti à troca de olhares e sorrisos de Elis Regina e Maria Rita no anúncio de celebração dos 70 anos de Brasil da montadora, a reação foi mítico-religiosa. Vi na peça — publicitária, sim; remunerada, claro; capitalista, óbvio — uma representação do provérbio iorubá que popularizou o orixá subversivo da ordem, do espaço, do tempo. “Exu matou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje” é ideia que torna possível o encontro da filha adulta com a mãe que perdera 40 anos antes, menina ainda.

Maria Rita e Elis Regina dirigem, na mesma estrada, veículos de duas épocas. Presente e passado caminham simultaneamente, na mesma direção. O mito de Exu em imagem e som, viabilizado pela criatividade humana, pela tecnologia, pela (perigosíssima) inteligência artificial. Qualquer pessoa que já perdeu um ente muito querido alimenta pensamentos mágicos do reencontro que sabe impossível. A saudade dói fundo quando bate a consciência do nunca mais. Eu, que tanto sonhei apresentar meu neto à bisavó, mãe que perdi há uma dúzia de anos, me enxerguei em Maria Rita.

Mas, da babel das redes sociais, brotou a controvérsia. Houve quem se emocionasse com Elis, com Elis cantando Belchior, com o encontro de Elis e Maria Rita, com velhos automóveis que guardaram saudosas histórias familiares. Houve quem se indignasse com Elis avivada pela inteligência artificial; com a apropriação da canção-protesto “Como nossos pais”; com o contrato publicitário da herdeira; com a exaltação aos automóveis; com o cinismo da companhia marcada por passivos político-ideológicos, humanitários, ambientais.

Empatia e emoção não são incompatíveis com pensamento crítico e conhecimento histórico. Dá para assistir ao filme, se comover com mãe e filha e com a lembrança dos automóveis da infância. Dá para não gostar e respeitar. Não dá para desaprovar e ofender.

Não é a primeira vez que a propaganda recorre ao cancioneiro de nossas vidas. Tom Jobim cedeu “Águas de março” à Coca-Cola. Lembro-me de um anúncio de sapatos em que a jovem protagonista cantarolava “Pra não dizer que não falei de flores”. Tampouco são inéditos anúncios que evocam a paixão dos brasileiros por automóveis. Isso já foi até slogan da mesma rede de postos que identificava o ex-ministro da Economia.

No subúrbio onde cresci nos anos 1970, poucos vizinhos tinham carro. Ali, automóvel tinha status de membro da família ou animal de estimação. Lavar o carro era programa de fim de semana de pais e filhos. Mangueira e balde, esponja e sabão, litros de água potável desperdiçada em prol da limpeza de um monte de aço motorizado. Lembro o bem conservado Fusca 1966 do avô da minha única filha. Do acidente que resultou na perda total da relíquia emergiu um luto insuperável.

Carro foi sonho assemelhado à compra da casa própria. Significava muito para muita gente. Ainda hoje, é desejo de consumo ou alternativa de sustento num país ainda refém do modelo rodoviário e apegado ao transporte individual. Nos anos 1990, o presidente Itamar Franco deu a largada no projeto do carro popular, que ressuscitou o Fusca e abriu caminhos para os modelos 1.0.

Três décadas depois, Lula, em terceiro mandato, fez brotar um programa de desoneração tributária para baratear automóveis. Em poucas semanas, quase 100 mil veículos foram vendidos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve de elevar de meio bilhão para R$ 800 milhões o crédito tributário para montadoras oferecerem descontos.

Pelo tanto que automóveis significam, houve comoção quando foi interrompida a produção do Fusca (1996), da Kombi (2013) — único automóvel que fui capaz de desenhar na vida — e do Gol (2022), maior sucesso da indústria automobilística do Brasil. O modelo foi líder de vendas de veículos zero-quilômetro por inacreditáveis 27 anos, de 1987 a 2014.

A trajetória da Volks, que ora celebra sete décadas de Brasil em campanha da AlmapBBDO, guarda bibelôs de memórias familiares e crimes históricos. Pertence a uma cadeia produtiva que queima combustíveis fósseis e alimenta a crise climática. Na Alemanha, alinhou-se ao regime de Adolf Hitler; aqui, à ditadura cívico-militar. Protagonizou o maior escândalo planetário de falsificação de resultados de emissões de poluentes, que envolveu 11 milhões de veículos a diesel. No Brasil, a fraude alcançou 17 mil automóveis e rendeu multa de R$ 50 milhões pelo Ibama, R$ 8,3 milhões pelo Procon-SP e R$ 7,2 milhões pelo Departamento de Proteção ao Consumidor.

Nada disso está ou será esquecido. Mas ninguém deveria ser execrado por se emocionar com um encontro nunca materializado entre mãe e filha, com a memória de um automóvel da família, com a canção marcante num filme publicitário. Soluços de momentos bons de viver.

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