Consciência negra, da necessidade de se lutar contra o racismo para além dos gabinetes – Por: Dennis de Oliveira

 

Hamilton Cardoso, jornalista e liderança do movimento negro, morto em 1999

O Dia da Consciência Negra sempre me faz lembrar um grande ativista e intelectual e que foi uma das minhas principais referências da luta contra o racismo que foi o jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999). Conheci-o por conta do meu início de militância no movimento negro, estava ajudando a construir uma entidade do movimento negro junto com outros ativistas. O tempo de convivência foi curto devido a sua morte prematura, mas foi proveitoso em termos de aprendizado. Uma das frases que até hoje me lembro do Hamilton era que o movimento negro precisaria construir uma estratégia de articular todos os espaços em que os negros estivessem juntos, não apenas os espaços políticos. Hamilton ia até mesmo nos concursos de Miss Afro que alguns clubes negros organizavam nos anos 1970 e 1980, eventos que vários militantes desprezavam por considerá-los despolitizados.

O racismo no Brasil hoje cada vez mais mostra a sua face: trata-se de um genocídio em variadas manifestações. Por que genocídio? A palavra genocídio vem do grego “genos” que significa raça, nacionalidade, tribo e da raiz latina “Cida” que significa matar. Portanto, genocídio é um processo sistemático de extermínio de pessoas com motivação étnica, racial, nacionalidade.

Como o racismo se manifesta no Brasil atualmente?

– Três em cada cinco jovens assassinados no país são negros;

– Os salários dos trabalhadores negros são, em média, 36,1% inferiores ao dos trabalhadores brancos;

– Os autos de resistência têm sido um instrumento institucional utilizado para que as forças policiais justifiquem assassinatos cometidos nas suas incursões em bairros periféricos e a grande maioria das vítimas é negra;

– Os grupos culturais de jovens negros têm sido sistematicamente reprimidos nas suas manifestações nos bairros periféricos. Os bairros da cidade do Rio de Janeiro ocupados pelas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) tem sido um exemplo deste motivo. Ações culturais negras são criminalizadas.

– Os espaços e sacerdotes das tradições de matriz africana são atacados, impunemente, por pessoas de outras religiões de matriz cristã. Casas de candomblé são invadidas, adeptos das tradições são perseguidos. Conteúdos de História da África e de Cultura Afrobrasileira, previstas na lei 10639/03 referentes as tradições encontram dificuldades de serem implementados por conta da intolerância religiosa de profissionais e gestores da educação.

– O racismo institucional impede que medidas legais já vigentes sejam implementadas por conta do preconceito dos agentes responsáveis pela sua aplicação.

– Intervenções no espaço urbano têm sido realizadas de forma a desrespeitar os direitos dos moradores de periferia, expulsando-os para lugares mais distantes num processo de faxina étnica.

Na última Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a presidenta da República reconheceu, no discurso de abertura, a existência do genocídio. Entretanto, os dados mostram um corte orçamentário significativo nos programas de combate ao racismo, a começar pelos órgãos responsáveis como a Seppir (corte de 25%) e a Fundação Palmares. Com isto, programas como o Juventude Viva têm dificuldade de sair do papel. A implementação da lei 10639/03 fica na dependência do voluntarismo de educadores negros e comprometidos com a luta anti-racista.

Motivo de tudo isto? O professor Clóvis Moura, que foi para o Orùn há 10 anos, dizia que o Estado brasileiro tem o DNA racista porque foi estruturado para garantir os privilégios de uma elite cuja riqueza e poder é acumulada com base no racismo. É uma elite herdeira dos escravocratas. A superação do racismo passa, segundo Moura, pela radical democratização das estruturas sociais do país. É uma luta política, portanto, e que deve ser desenvolvida para além dos espaços institucionais cujos limites são nítidos. Infelizmente, parcela significativa do movimento negro organizado optou em priorizar a ocupação de espaços institucionais como forma de manutenção estrutural e financeira das suas organizações e até mesmo pessoal. E, por esta razão, tem dificuldade de dar resposta ao agravamento da violência racial por conta dos limites dos espaços institucionais.

A luta contra o racismo tem um caráter de ativismo constante. É uma luta que se desenvolve no trabalho, na escola, nos espaços de manifestação das tradições africanas, nos grupos culturais, nos bairros, na universidade. É uma luta pelo direito de ser afrodescendente brasileiro, portador de uma tradição, com direito a uma vida digna e um futuro promissor. Somos todos ativistas anti-racistas.

Assim, o que se observa é o espraiamento da ideologia e do ativismo anti-racista para além destes espaços tradicionais. Não se trata da negação ou rejeição destes, ou mesmo de considerar a importância da ocupação dos espaços. É de grande importância e até de caráter histórico, representantes do Poder Público reconhecerem oficialmente a existência do racismo e até adotar medidas para combatê-lo. Mas como o próprio Clóvis Moura demonstrou que quando a luta saiu dos quilombos e foi para os gabintes, a abolição da escravidão ficou inacabada. O mesmo erro pode se repetir com esta institucionalização. O lado bom é que cresce o número de ativistas anti-racistas que estão criando novos espaços de ação política negra. Hamilton Cardoso falava: é preciso articular todos os espaços, é preciso que se trace uma estratégia política para isso e não apenas para ter empregos nos gabinetes públicos.

 

 

Fonte: Quilombo

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