Cotas de Pioneirismo

Por: Helena Mader

A reserva de vagas para negros, o vestibular para índios e as graduações a distância lançados pela universidade inspiraram outras instituições de ensino superior e se transformaram em modelo nacional

O perfil da Universidade de Brasília passou por uma transformação na última década. A UnB chega ao seu cinquentenário mais plural e, sobretudo, mais negra. Uma iniciativa polêmica, mas precursora, mudou a cara da instituição e permitiu o acesso de 6,4 mil afrodescendentes desde 2004, quando o sistema de cotas foi adotado na universidade. Essa política afirmativa garante 20% das vagas no vestibular para candidatos negros. Ao comemorar 50 anos, a instituição exibe estatísticas que mostram como atitudes pioneiras na educação superior brasileira podem mudar a realidade de uma universidade. Além dos alunos selecionados pelas cotas, a UnB abriu as portas para índios e estudantes estrangeiros, especialmente africanos. A mudança no perfil da instituição pode ser observada nos corredores do Minhocão, das faculdades e também nos novos câmpus.

A UnB aprovou o sistema de cotas em junho de 2004, depois de vários anos de debates e de muita polêmica. Ela foi a primeira instituição federal de ensino superior a adotar essa medida, que gerou resistência e causou uma divisão na universidade. Os opositores do sistema alegavam que uma política de cotas sociais, com benefícios ao acesso de estudantes carentes, teria impacto muito mais relevante do que um sistema de seleção pela cor da pele. Também houve críticas de candidatos ao vestibular que afirmavam que negros com notas mais baixas poderiam “roubar” as vagas de outros concorrentes mais qualificados.

Hoje, a universidade está mais pacificada, mas ainda existem conflitos latentes. Quando o sistema foi criado, a tensão era muito maior. A estudante Andressa Marques, 25 anos, passou no vestibular em 2005, na terceira turma selecionada pelas cotas. “Entrei em um espaço muito hostil. Na época, o debate ainda não estava maduro. Tive que ouvir muitos comentários depreciativos”, conta Andressa, hoje formada em letras e cursando o mestrado em literatura. Ela buscou apoio no movimento negro e atualmente é uma grande defensora do sistema que permitiu seu acesso à UnB. “Na minha família, ninguém tem curso superior. Isso era impensável há algumas gerações. Mas as cotas mudaram essa realidade e tenho certeza de que a UnB é um espaço com mais pluralidade e com muito mais riqueza no debate”, acrescenta Andressa Marques.

História de inclusão

O coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB, Ivair dos Santos, diz que as políticas afirmativas para a inserção dos afrodescendentes não começaram em 2004, com a criação do sistema de cotas. “Para mim, a universidade tem uma história de 50 anos de inclusão. Afinal, esse é o espírito da UnB desde a sua criação, a nossa instituição tem como princípio o compromisso social. A defesa da igualdade está no nascedouro da universidade, por isso conseguimos implantar esse sistema aqui. Nosso terreno era fértil”, comenta Ivair. Ele participou dos primeiros debates sobre ações afirmativas, ainda em 1996.

Para ele, os questionamentos acerca do sistema de cotas já estão superados, apesar de ainda haver muitas críticas de vários setores da universidade. “A resistência era fruto do desconhecimento e eu tenho convicção de que a UnB ganhou muito com as políticas afirmativas. Quem coloca obstáculo nunca traz outra proposta, são pessoas que não querem enfrentar o problema da discriminação ou que minimizam o racismo. Só que, para quem sofre na pele, isso não é tolerável de nenhuma forma”, argumenta o coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB. Desde que as cotas foram criadas, cerca de mil estudantes negros se formaram pela universidade. Muitos estão nos programas de pós-graduação ou inseridos no mercado de trabalho.

Modelo

O reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Júnior, acredita que o sistema definido na universidade servirá de modelo para todo o Brasil. “A discussão está no Supremo Tribunal Federal, que vai definir o modelo brasileiro de cotas. Assisti às audiências e tenho convicção de que o caso da UnB é exemplar, o modelo já está estabelecido”, afirma o reitor. “Hoje, já existe um reconhecimento da política de cotas como necessária”, acrescenta José Geraldo.

Além dos afrodescendentes aprovados com o sistema de reserva de vagas, a UnB tem 318 alunos estrangeiros. O cientista social Gaudêncio Pedro da Costa, 31 anos, veio da Guiné-Bissau para estudar na universidade e elogia a abertura a candidatos de outros países. “Acho muito importante a cooperação entre o Brasil e os países africanos. Esse intercâmbio propicia um espaço interessante para debates e para o aprendizado mútuo”, explica Gaudêncio, que faz pós-graduação em administração e pretende voltar ao país de origem para disseminar a experiência que teve no Brasil.

Outra iniciativa pioneira da UnB para democratizar o ensino superior é a criação do vestibular para índios. Atualmente, 54 indígenas estudam na universidade. A iniciativa é fruto de um convênio entre a instituição e a Fundação Nacional do Índio, que permite o acesso de 10 índios a cada vestibular. Os cursos são definidos de acordo com a necessidade das tribos e a maioria das vagas é concentrada na área de saúde, como medicina e enfermagem.

Na minha família, ninguém tem curso superior. Isso era impensável há algumas gerações. Mas as cotas mudaram essa realidade e tenho certeza de que a UnB é um espaço com mais pluralidade e com muito mais riqueza no debate”

Andressa Marques,

aluna do mestrado em literatura, ingressou na UnB por meio das cotas, em 2004

Para mim, a universidade tem uma história de 50 anos de inclusão. Afinal, esse é o espírito da UnB desde a sua criação”

Ivair dos Santos,

coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB

Esse intercâmbio propicia um espaço interessante para debates e para o aprendizado mútuo”

Gaudêncio da Costa,

cientista social da Guiné-Bissau

 

 

Fonte: Correioweb

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