CPI do Feminicídio aponta falhas do poder público na proteção de mulheres

Dados do relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Feminicídio, obtidos com exclusividade pelo Correio, deixam evidentes as falhas do poder público em proteger mulheres vítimas deste crime. Em 100% dos casos, os agressores eram reincidentes em violência doméstica, de acordo com as informações levantadas pelo grupo de investigação. Uma atuação célere, punição e a criação de uma rede de proteção poderiam ter evitado a dor que se abateu sobre as vítimas, familiares e amigos. Foram analisados 90 processos entre 2019 e 2021.

O feminicídio é um delito cruel que deixa marcas por gerações, sejam nos pais ou filhos das vítimas, e cria traumas com impactos profundos em todo o círculo social das mulheres assassinadas. Somente neste ano, sete casos foram registrados na capital federal. Um dos maiores problemas encontrados pela comissão é a falta de integração entre os serviços de proteção.

A conclusão dos distritais é a de que muitas vidas poderiam ser salvas se houvesse mais parceria entre os órgãos. “É muito grave. A falta de um atendimento integrado do Estado permite a morte das mulheres e promove esse ambiente de violência e insegurança”, destaca o relator da CPI, deputado Fábio Felix (Psol).

Mostrando não ser um fenômeno casual, as estatísticas apontam a ascensão do crime. De acordo com o relatório obtido pelo Correio, 37 mulheres foram mortas e 53 sobreviveram a crimes tentados entre 2019 e 2021. Das sobreviventes, 84,9% tiveram medidas protetivas de urgência (MPUs) solicitadas somente após uma tentativa de feminicídio. “As medidas protetivas são positivas, mas são insuficientes porque não há um monitoramento posterior”, diz o distrital.

A secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal, Ericka Filippelli, afirma que a pasta tem tomado uma série de medidas para ajustar os serviços e ressalta que o número de feminicídios diminuiu. “O DF foi a única unidade da Federação a apresentar queda no índice de feminicídio em 2020. Temos uma diminuição de 46,6%. Este ano, por mais que a gente esteja impactado por esses casos, não está diferente do ano passado. Estamos com o mesmo índice. A gente tem trabalhado bastante”, diz.

O pedido de criação da CPI, em 2019, alertava para o aumento da quantidade de crimes de feminicídio tentados e consumados naquele ano. Os trabalhos dos parlamentares se concentraram em oitivas de autoridades e integrantes de movimentos de mulheres que atuam no enfrentamento à violência de gênero; de especialistas; de vítimas de agressões; e, eventualmente, de agressores. Houve, ainda, audiências públicas, diligências, apresentação de requerimentos, relatórios, pesquisas e estudo de casos. Os trabalhos foram divididos em três fases: exploratória, instrutória e conclusiva.

A vice-presidente da CPI, deputada Arlete Sampaio (PT), fala sobre o trabalho da comissão em analisar as falhas dos serviços de proteção. “Começamos fazendo diversas oitivas a secretários de Estado para saber que políticas públicas estavam sendo desenvolvidas no sentido de prevenir a possibilidade de mulheres serem vitimadas. Ouvimos Secretaria da Mulher, Secretaria de Segurança Pública, programas que tinham na Polícia Militar e Programas do Ministério Público”, detalha.

Órfãos do feminicídio

Segundo o relatório da CPI do Feminicídio, em 40,4% dos casos havia filhos ou dependentes comuns entre a vítima e o agressor. A estudante Flaviane Pereira de Sousa, 22 anos, perdeu a mãe para a violência. A doméstica Tatiane Pereira, 41 anos, morreu no dia 12 de abril deste ano, no Paranoá, após ser espancada pelo marido e sofrer uma hemorragia. “Ele foi para o bar de madrugada e ela foi atrás dele. Ele a agrediu muito, no dia seguinte, minha mãe foi embora. Ela disse que ia à delegacia e nós fizemos um boletim de ocorrência. Eles deram a medida protetiva e um encaminhamento ao IML (Instituto de Medicina Legal). Mas, na manhã seguinte, o estado de saúde dela foi só se agravando”, conta Flaviane sobre o dia da morte da mãe.

Segundo a filha, as agressões eram constantes. “Ele sempre agredia minha mãe. Mas ela tinha muita fé que Deus ia mudá-lo. Por isso, ela escondia de todo mundo. Ela não queria que ficassem com raiva dele. Ela tinha um sonho de que a família ia ser transformada e que ia ficar tudo bem”, diz. A estudante detalha a crueldade do espancamento. “Ele agrediu com socos, puxões de cabelos e a pisoteou. Ela teve hemorragia e estava toda roxa. Ele só batia no corpo que era para ninguém perceber. Ele se achava muito esperto e nunca fazia nada no rosto para não ficar aparente”, conta.

A prima da vítima morava na mesma rua e fala sobre o longo histórico de agressões do acusado. “Ele tem antecedentes de outros relacionamentos e várias passagens pela polícia pela lei Maria da Penha. São sete passagens pelo mesmo crime”, diz a cabeleireira Andreia Pereira, 40 anos.

O casal tinha um filho em comum. Com 4 anos, o pequeno Moisés está sob a guarda da irmã Flaviane. “Pouco antes de falecer, Tatiane pediu para a filha cuidar dele. Ele é uma criança especial. Conseguiram uma creche e estão atrás de uma aposentadoria agora”, afirma Andreia.

Outro caso que chocou o DF foi o assassinato de Rosileia Pereira Freitas, 36. Ela foi esfaqueada pelo menos 30 vezes, no meio da rua, em Taguatinga, na frente da própria mãe. A senhora também foi agredida pelo homem. A empresária Rosileide Freitas, 26 anos, irmã da vítima, fala da saudade que sente. “Nada vai trazê-la de volta. Eu quero que a justiça seja feita. Ela era especial e importante na minha vida. Eu espero que agora ela esteja bem e em paz. E, se ela pudesse me ouvir, diria que ela faz muita falta”, emociona-se. Rosileia deixou dois filhos, de 8 e 18 anos.

Normatização
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Lia Zanotta Machado, especialista em direitos humanos e violência urbana, fala sobre a normatização da violência contra a mulher. Ela destaca que, apesar da sociedade brasileira ser violenta em um contexto geral, quando se trata do gênero feminino é ainda pior. “A violência física entre homens é diferente. Ela nunca foi legalizada ou aceita pela sociedade. Ela sempre foi pensada como contra lei, que se esse homem matar o outro ele merece a prisão. Com as mulheres, a violência é crônica e a sociedade aceita.

Zanotta ressalta o impacto do feminicídio na vida dos filhos das vítimas. “A grande questão é que essas crianças vivem em condição de violência crônica contra as suas mães. Ou seja, nas suas casas, aprendem que qualquer discórdia se resolve com conflito físico. E aprendem outra coisa: que o homem tem de ser violento e a mulher tem de aguentar a dor, o sofrimento e a submissão”, explica a especialista.

» Relatório da CPI

» Total de 90 processos analisados

» 37 mulheres foram mortas por feminicídio e 53 sobreviveram a crimes

» 84,9% das sobreviventes tiveram Medidas Protetivas de Urgência (MPUs) solicitadas somente após a tentativa de feminicídio

» Em relação à proteção pelo sistema de Justiça, 48,6% das vítimas de feminicídio tinham medidas protetivas de urgência deferida

» 100% dos autores de feminicídio em 2021 tinham reincidência no crime de violência doméstica

» No primeiro trimestre de 2021, houve aumento de 40% dos feminicídios tentados em relação a 2020

» Entre 2019 e 2020, 72,2% relatam violências anteriores sofridas pelas vítimas pelo mesmo autor e, em 85,55% dos casos, foram identificados fatores de risco, como ameaças e agressões anteriores motivados por sentimento de posse do autor

» Em 40,4% dos casos havia filhos ou dependentes comuns entre a vítima e o agressor

» Dos 90 processos, 11,11% são de mulheres brancas, 43,3% negras ou pardas e 45,5% sem informação

» Arma branca foi utilizada em 68,88% dos casos, arma de fogo (11,11%), queimaduras (5,55%), asfixiamento (4,44%), paulada (2,22%) e espancamento (1,11%). Não houve esclarecimento sobre a arma usada em 6,66%
dos feminicídios

» O que diz a Lei de Feminicídio

A advogada criminalista Hanna Gomes tira as principais dúvidas sobre a Lei 13.104

O feminicídio foi introduzido no nosso Código Penal em 2015, pela Lei 13.104, e trouxe a figura penal específica do homicídio cometido contra mulher, em razão da sua condição de gênero. É o assassinato de mulher por desprezo, discriminação ou aversão ao gênero feminino. Por isso, nem todo assassinato de mulher pode ser enquadrado como Feminicídio. É um dos casos de crimes que vão à júri popular (Tribunal do Júri).

Qual é a pena?
Trata-se de um homicídio qualificado pelo menosprezo à condição feminina. A pena é de até 30 anos, podendo ter aumento de um terço até a metade, caso o crime seja praticado em estado gravídico ou 3 meses após o parto; contra mulher menor de 14 anos ou maior de 60 anos; contra mulher com deficiência ou doença limitante; ou ainda quando praticado na frente de ascendentes ou descendentes das vítimas. Se o crime também for praticado em descumprimento de medidas protetiva, haverá aumento de pena de um terço até a metade.

Existe alguma indenização do Estado?
É possível discutir uma certa indenização contra o Estado, quando a mulher ou seus familiares esgotaram as tentativas e as medidas oferecidas pela legislação, e mesmo assim o Estado, por sua culpa, omissão ou negligência, não conseguiu proteger a vida dessa mulher. Não é uma situação pacífica, mas é possível uma demanda judicial contra o Estado, por danos morais e materiais, uma vez que é um dever constitucional do Estado zelar pelo bem-estar, pela integridade e pela segurança de todos. Quando o Estado falha na prestação desse dever, mesmo tendo a vítima se assegurado de todos os mecanismos legais de proteção, é possível a responsabilização civil.

» Linha do tempo
Casos de feminicídios que chocaram o DF

Diva Maria
Diva Maria Maia da Silva, 69 anos, foi morta pelo marido baleada, na 316 Norte. O homem também atirou três vezes no filho. O crime aconteceu em
janeiro de 2019.

Letícia Curado e Genir Pereira
A funcionária do Ministério
da Educação (MEC) Letícia Sousa Curado Melo (E), 26 anos, e a empregada doméstica Genir Pereira de Sousa, 47, foram assassinadas por Marinésio dos Santos Olinto — chamado de “maníaco em série”,
em agosto de 2019.

Francisca Náidde
Francisca Náidde de Oliveira Queiroz, 57 anos, foi morta pelo marido, Juenil Bonfim de Queiroz, em junho de 2019, no Cruzeiro Novo. O homem cometeu o crime por acreditar que a vítima tinha um relacionamento com vizinho — que também levou dois tiros e morreu.

Evelyne Ogawa
A radialista Evelyne Ogawa,
38 anos, foi assassinada
pelo marido, com quem se relacionava havia quatro anos, no dia 26 de março deste ano, em casa, em Samambaia. Segundo o laudo
do IML, a morte foi por asfixia.

Tatiane Pereira
A doméstica Tatiane Pereira, 41 anos, morreu no dia 12 de abril deste ano, no Paranoá, após ser espancada pelo marido e sofrer uma hemorragia

 

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