Todo ano a mesma chuva. Certas como a morte — não raro, trazendo-a — são as tempestades de verão no Rio de Janeiro. E, ainda assim, o poder público dá vexame. O governador Cláudio Castro, de férias nos Estados Unidos, retornou às pressas para declarar que não faltou nada à população e que, no ano passado, choveu em abril, não nesta época. Para dizer isso, nem precisava voltar.
Quatro dias depois da chuvarada que massacrou bairros da Zona Norte da capital e municípios da Baixada Fluminense, deixando 12 mortos, áreas de Duque de Caxias ainda estavam alagadas, e moradores assombrados com a previsão de mais chuva no fim de semana. Faltaram água e luz; trechos da Rodovia Washington Luís/BR-040, federal, ficaram inundados por mais de uma dezena de horas; alagadas, estações da Linha 2 do metrô pararam. Sinal de que as concessionárias tampouco sabem enfrentar os eventos climáticos frequentes e intensos, que especialistas anunciam há tempos.
A meteorologia evoluiu a ponto de antecipar tanto a ocorrência quanto a intensidade dos fenômenos. Ainda ontem, a Defesa Civil e o Centro de Operações alertavam sobre pancadas de chuva, raios e vento forte no Rio. Por SMS e pelas redes sociais, sabemos quando choverá e quanto; qual a velocidade do vento; que temperatura vai nos torrar os miolos. Sem informação nada se faz; só com ela, muito pouco.
Há uma diferença entre saber o que acontecerá e como agir. As intempéries são anunciadas, mas a resposta é insuficiente. No Estado do Rio — e Brasil afora — as tragédias se repetem, porque falta investimento em prevenção, uma obviedade, mas também pela incapacidade de dimensionar os danos e mitigá-los em prazo aceitável. Entrevistas com vítimas dos desastres naturais — sempre pobres, quase sempre pretas, daí o conceito de racismo estrutural, habitué das conferências do clima da ONU — dão pistas sobre os equívocos.
É comum em catástrofes da crise climática testemunhar a perplexidade dos moradores. É gente que mora há anos, décadas, num mesmo endereço e passa a não reconhecer o próprio território. Assistimos a isso na tragédia que ceifou a vida de 53 pessoas no Vale do Taquari (RS) em setembro passado. A água inundou áreas nunca alcançadas e atingiu altura inédita. Na Zona Norte do Rio, moradores relataram o mesmo.
Em Anchieta, segundo o Sistema Alerta Rio, choveu 259,2mm em 24 horas entre sábado e domingo passados. A quantidade foi quase 40% acima da média histórica de janeiro. Em Irajá, o pluviômetro marcou 209,2mm, quase 25% acima da média. Na Zona Norte carioca, quatro rios (Pavuna, Quitungo, Acari e Cachorros) transbordaram. Dezenas de famílias perderam tudo. Na Baixada, idem.
A secretária de Meio Ambiente do Rio, Tainá de Paula, arquiteta e urbanista, disse que o volume de chuva impressiona, mas não foi tão maior que em outras enchentes históricas. Desta vez, contudo, o alagamento foi maior. É indício de que a Região Metropolitana não avançou o necessário em intervenções urbanas para enfrentar o novo normal. Tem a ver com ocupação do solo, falta de cobertura vegetal, dragagem de rios, gestão de resíduos.
Levantamento do governo federal identificou 1.942 municípios com moradores em áreas de risco de inundações, deslizamentos e enxurradas. Em São Paulo, a Defesa Civil municipal identificou 214 mil imóveis em risco geológico e hidrológico, 17% mais que em março de 2023. Tal como na capital paulista em novembro, o temporal em Porto Alegre no início desta semana derrubou postes (27) e árvores (150). O prefeito da capital, Sebastião Melo, foi às redes pedir a moradores motosserras emprestadas para liberar as vias.
Na Baixada, a resposta do poder público foi lenta e nada eficiente. Além da demora em drenar os territórios alagados, a assistência à população foi sofrível. Em Nova Iguaçu e Duque de Caxias, moradores desalojados tiveram de enfrentar filas sob sol escaldante para se cadastrar em benefícios sociais. Além das chuvas intensas, o verão do El Niño trouxe calor inédito ao estado. Em Guaratiba, Zona Oeste carioca, por três dias seguidos nesta semana, a sensação térmica passou de 50 graus.
Organizações comunitárias foram mais eficientes em identificar problemas e em apresentar soluções. O Voz das Comunidades, do Complexo do Alemão, distribuiu já na tarde de domingo dezenas de vassouras e kits de produtos para ajudar na limpeza dos imóveis em Acari. O Instituto Sol preparou 160 quentinhas para distribuir a quem não tinha condições de cozinhar em Rocha Miranda. Vem à memória o refrão de Emicida em “Principia”: “Tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis”.