Documentário mostra negros divididos sobre casamento gay nos EUA e explicita influência religiosa no debate sobre direitos civis
Por Flávia Oliveira Do O Globo
O round da vez entre moralistas e humanistas brasileiros acerca da campanha do Boticário para o Dia dos Namorados ganhava musculatura nas redes sociais, enquanto eu assistia a “The new black”, documentário americano trazido ao Rio para o 8º Encontro do Cinema Negro Zózimo Bulbul. Em tradução livre, “O novo preto” que dá nome ao filme se refere aos direitos civis dos LGBTs. A expressão que a diretora Yoruba Richen tomou emprestada do mundo da moda sugere que o assunto ocupa, agora, o centro das discussões sobre igualdade no país de Barack Obama. A pauta era quase monopólio dos negros, desde os anos 1960. Dá o que pensar.
Dois fatos aproximam do Brasil o documentário que acompanhou a mobilização de ativistas e conservadores até a votação do referendo sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em novembro de 2012, no estado americano de Maryland. O filme explicita a influência das igrejas evangélicas no comportamento do eleitor negro nos EUA, tendência que avança a passos largos em terras tropicais ao Sul do continente. Além disso, obriga o espectador a refletir sobre interesses divergentes em comunidades (supostamente) homogêneas.
É nesse ponto que entra a campanha “Toda forma de amor” do Boticário. A companhia lançou, em fins de maio, um comercial de TV com três casais se presenteando pelo 12 de junho. Um era formado por um homem e uma mulher; outro, por duas mulheres; o terceiro, por dois homens. Foi o bastante para homo e lesbofóbicos de plantão convocarem um boicote à marca. Em reação, ativistas e simpatizantes da causa LGBT propuseram o “consumão”. A rede, por sua vez, não se intimidou. Em nota, avisou que “a proposta da campanha é abordar a ressonância sobre as diferentes formas de amor, independentemente de idade, raça, gênero ou orientação sexual”.
Fez bem o Boticário ao reafirmar seu compromisso com a igualdade. Ocorre que, no anúncio da discórdia, não há um casal negro ou interracial. A falta de mistura remete ao ponto de partida do filme. “The new black” lembra que os afroamericanos, no passado, marcharam com o pastor Martin Luther King contra a discriminação pela cor da pele. Mas, neste século, se dividiram sobre os direitos dos LGBTs.
O assunto passou ao largo do ativismo dos anos 1960, numa réplica do modelo “Não pergunte, não fale” vigente nas Forças Armadas. As igrejas e seu pensamento “homofóbico sistêmico”, como definiu uma militante, estão no centro das comunidades negras dos EUA. Assim, na hora do voto, para surpresa de muitos, líderes negros se aliaram a conservadores brancos e hispânicos em campanha contra o casamento gay em Maryland. “Havia um conflito entre os gays e os african-americans. Nos víamos primeiro como negros. Não entendíamos a ideia da opressão dupla, por ser negro e gay”, diz no filme Sharon Lettman-Hicks, da NBJC, uma organização dedicada a LGBTs negros.
O documentário apresenta a argumentação ancorada em preceitos religiosos dos que são contra o casamento igualitário. Líderes citam a tradição bíblica da união homem-mulher; e lembram certos brasileiros. Maryland acabou aprovando o casamento gay, por 52% dos votos. Mas só depois que Barack Obama, já em segundo mandato, declarou apoio à lei e os ativistas saíram em campanha aberta, lembrando às comunidades negras que igualdade é direito incondicional. Ninguém pode ficar de fora.