Diálogo entre uma sociόloga brasileira negra e um jornalista italiano branco

Michele Carlino, jornalista italiano da Euronews, concedeu-me uma entrevista sobre a televisão pública italiana para minha tese de doutorado sobre o “corpo do imigrante na mídia italiana”. Desde então, temos tido conversas calorosas, visto minha militância no Feminismo Negro. Em um dos nossos encontros ele encheu-me de questionamentos sobre minhas posições, falas, posturas e, como suas perguntas não são novidade para mim, pois  ouço a mesma coisa há anos, lhe pedi a permissão para registrar e transformar nosso diálogo em um texto. Ele autorizou e lhe sou grata por isso, pois acho que pode ajudar muitas pessoas, brancas sobretudo, a entenderam alguns pontos e a nό, mulheres negras, a economizar saliva. (Fabiane Albuquerque, Lyon, França, julho de 2020) 

Michele Carlino: Porque temos sempre que colocar as coisas nesses termos de “raça”? Porque não podemos estar no espaço do universal onde somos livres de sermos o que queremos ser  sem etiquetas, sem rόtulos ou compartimentos?

Fabiane Albuquerque: Porque esse espaço, na realidade, não existe no nível ideal, mas  como utopia, sim. Seria lindo essa possibilidade de  não ter ninguém para me definir e eu também não precisar definir-me como forma de não aceitar a definição dos outros, mas o universal como conhecemos é  branco, masculino e burguês e nele eu não estou.  

Michele Carlino: Mas, não podemos criar, então, esse espaço?

Fabiane Albuquerque: claro que podemos: Estamos lutando para isso, ou você acha que nossa luta é para ficar no lugar de sempre, aquele do específico, do exόtico, da subserviência, do Outro? Não pense que negros, negras, indígenas… não estejam lutando para isso. Nόs estamos buscando há séculos o reconhecimento dessa humanidade universal que você fala, esse espaço onde podemos nos respeitar e nos aceitar sem hierarquias, sem que uns inferiorizem ou eliminem o outro. Nossos corpos, nossas tradições, culturas, saberes, pensamento e conhecimento ancestrais não são aceitos dentro da ideia de universal que conhecemos, não são considerados oficiais e legítimos. E mais, isso que você chama de universal, para nόs é assimilação, é a aceitação dos valores que nόs não criamos, mas nos são impostos como os “melhores”. Querem que a gente vá ao encontro de uma visão e uma  concepção de mundo que já foi criada, sem a nossa participação e querem que a aceitemos caladas.  Não nos perguntaram e não nos perguntam ainda o que achamos disso e  como podemos contribuir.  Estamos dispostas, estamos prontas para isso. 

Michele Carlino: Mas Nelson Mandela conseguiu, na África do Sul. Ele conseguiu juntar negros e brancos depois de 28 anos de prisão. Ele conseguiu algo inédito para aquela realidade. Ele manteve um pensamento ecumênico e  que contrapôs à ideia de negros contra os brancos e brancos contra negros.

Fabiane Albuquerque: Atenção àquilo que você está dizendo. Você está me  dizendo que Mandela contribuiu para construir esse espaço que você idealiza. Eu digo que não foi isso. Esse homem, de alguma forma, quis evitar a vingança ao sair de uma prisão onde passou 28 anos injustamente, e ainda saiu dizendo para perdoar os brancos. Quem sou eu para dizer que ele estava errado. A questão é que não houve reparação depois do regime de segregação, não houve ressarcimento e justiça social. Os negros foram obrigados a deixar suas casas lindas, espaçosas, em bairros bons e centrais, seus empregos públicos, escolas, a fechar seus comércios e entregar tudo aos brancos, de um dia para outro, e  foram colocados nos townships. Depois disso nao devolveram nada a eles e se for esse o espaço do conformismo e resignação que você está propondo…

Michele Carlino: Eu acho que…

Fabiane Albuquerque: Eu ainda nao terminei. Você disse que queria entender, então lhe peço para escutar sem me interromper. 

Michele Carlino: Tem razão.

Fabiane Albuquerque: Quem guiou o processo de reconciliação na África do Sul, depois do Apartheid, foram  as igrejas e que bom que foram criados espaços para os negros contarem como foram torturados, como foi ver os seus serem assassinados de forma tão brutal  e que alguns brancos apareceram para ouvir. Mas, não ouso chamar isso de um “espaço onde negros e brancos vivem harmoniosamente”. E depois, você falou que seria bom que negros não se sobrepossem aos brancos e vice versa. Onde você está  vendo negros e negras tentando se sobrepor aos brancos ou minimamente se organizando para isso? Isso é uma visão tão equivocada da luta da população negra  e dos movimentos sociais. Praticamente chamam de sobreposição o que  é reivindicação  para fazer parte desse universal e desse espaço  que você citou no início. 

Michele Carlino: Eu entendo o que você está dizendo. Eu sό não concordo que temos que ficar nos definindo o tempo todo.

Fabiane Albuquerque: Eu não gosto também e gostaria de não precisar. Eu fui definida desde que nasci e então chegou um ponto na minha vida em que não dava mais para fazer de conta que eu sou igual a um homem branco, a um rico, a uma mulher branca, e foi aí que fui buscar saber quem sou eu no mundo. Mas se nόs nos auto definimos veem aí um problema, enquanto nos definem, tudo bem. Você não precisa se definir, pois é visto como sujeito universal, que não pertence a uma raça. Michele, nenhum negro acorda e decide “agora eu sou negro e vou passar a me apresentar assim”. Não é assim. Me chamaram negra, cabelo ruim etc e no dia que eu passei  a dizer “sim, eu sou negra, qual o problema?” Então  passaram a me acusar de identitarismo. 

Michele Carlino: Entendo. Eu não preciso me definir.

Fabiane Albuquerque: Claro, você não se define, você é aquele que define os outros. O problema da branquitude e do patriarcado é esse, nos definem há séculos. Criaram a ideia de raça, de civilizado e selvagem, de nobre e rude, de corpo inferior e corpo superior, de natureza e mente, de evoluído e atrasado etc. e  quando a gente se define, vocês veem problema nisso.

Michele Carlino: Eu não. Não me coloque nesse meio. Eu não vou levar a culpa pelo homem branco europeu que escravizou e colonizou o mundo todo.

Fabiane Albuquerque: Ninguém lhe está culpando. Mas se você não se situar enquanto sujeito histόrico, que nasceu no continente europeu, em um país central, branco, homem,  vai passar a vida inteira se defendendo “mas eu não sou assim” ou “eu não escravizei e colonizei ninguém”. Você não fez isso, mas você colheu os frutos disso e pelo jeito nunca reclamou. Então, quando eu falo “vocês”, eu lhe estou colocando na histόria, assim como eu colho as consequencias de ter nascido em uma familia de escravizados por 3 séculos, arrancada da África e eu nem sei de onde exatamente, numa classe social de trabalhadores e em um país que, todas as vezes que tentou levantar a cabeça, ser soberano e dar o mínimo de dignidade aos pobres como eu, foi sabotado, sofreu intervenção do imperialismo, pagando um altíssimo preço.  Eu venho de um país saqueado por outros países e de uma classe expropriada pelos mais ricos. 

Michele Carlino: Mas voltando à questão da raça. Aqui na Europa não usamos essa palavra porque é algo forte, pesado, devido ao holocausto. Quando Hittler e Mussolini promulgaram leis raciais, a extrema direita foi aquela que falava em “raças” diferentes. Essa palavra aqui tem uma carga pesadíssima. Você  não acha pesada essa palavra?

Fabiane Albuquerque: Eu entendo e respeito a histόria do Continente e essa ferida do holocausto. Eu vivi quase 7 anos na Itália e agora na França e entendo que aqui tem outro peso. Mas eu não criei essa ideia de raça, que fique claro, e não uso porque acredito que raças existam, muitos menos que umas sejam superiores às outras, eu uso para dizer que somos vistas como seres racializados e que os efeitos disso existem e são visíveis  até hoje. Eu tive um professor, na Universidade de Verona, que me dizia para não usar o termo “racismo”, porque se raça não existia, o racismo também não. Isso seria em um mundo hipotético. O racismo existe e como! Vocês sabem que existem. E eu uso de novo “vocês” como sujeito coletivo ( risos). Eu fiz um esforço para estudar e compreender a histόria europeia, mas não vejo o mesmo esforço por parte dos europeus em entender o que produzimos em termos de reflexões, de estudos sobre as questões raciais no Brasil, a nossa histόria e trajetόria e como os termos têm um significado e um contexto. Ao invés disso, nos pedem para não usar isso ou aquilo, para não falar de tal forma, mas de outra. O que não dá mais pra aceitar é ouvir de vocês que estamos erradas, que deveríamos utilizar as mesmas categorias que vocês usam. 

Michele Carlino: Você falou que vai ter sempre um limite entre nόs dois, que é o fato de eu não poder acessar algumas coisas da sua vivência porque eu sou homem, branco e europeu. Eu digo que não. Porque assim você já dá por vencido que não tem entendimento entre nós.  

Fabiane Albuquerque: Eu não coloquei nesses termos. Eu disse que tem uma forma de conhecimento sobre a realidade que é dada pela experiência e você, com o corpo que tem, com o gênero que tem e pela socialização que teve na vida, poderá não apreender a minha vivência de mulher negra periférica. E falo isso porque estudo, porque estou atenta às questões raciais e por experiência. Algumas pessoas brancas vão com a gente até certo ponto, elas conseguem ver coisas até certo ponto, outras sequer fazem esforço para entender e para sair do lugar aconchegante e confortável do “não ver”, “não ouvir”, “não agir”. E muitos têm nos dito assim “não é melhor parar de falar de racismo, isso cansa”. Se cansa para quem não vive, imagine para nόs? É sobre esse “cansar” que tentei lhe falar e se acontecer com você, eu não vou impedir que você vá e procure um lugar confortável no mundo para você.  O que eu não posso é ir com você para esse lugar do “universal” com o meu silêncio, vendo que as formas de nos exterminar são sempre atualizadas, mas muitos não querem ver  porque querem viver em “paz”. Isso não. Eu gosto de um texto que  diz que “a paz é muito branca” (risos). 

Michele Carlino: Mas você parece que está sempre em uma batalha, pelo jeito como coloca as coisas. 

Fabiane Albuquerque: E estou. É uma batalha diária, sem sossego e me  canso às  vezes. Eu tenho 40 anos e estou dizendo e explicando as mesmas coisas há anos. Tem gente chegando agora no debate querendo me ensinar as coisas, me dizendo como deveria ser o mundo e como deveria ser o meu tom de voz e as  minhas prioridades na vida. E tem gente que chega sem nenhuma bagagem sobre as discussões raciais ou de classe, gente que tem doutorado e pós doutorado. Isso cansa. Cansa ensinar esse pessoal e com esses eu não tenho a mínima paciência, pois chance de sentar a bunda e ler, estudar, analisar e refletir sobre o que está acontecendo no mundo, eles/elas tiveram. Me pergunto onde estavam esse tempo todo enquanto sentavam comodamente sob as epistemologias dominantes. Por isso lhe perguntei se podia registrar essa conversa. Eu estou repetindo para você o que já me questionaram outras vezes e isso parece não ter fim. E depois, somos nόs aquelas e aqueles que precisam se justificar sempre, que somos questionadas ao invés de questionar. Eu aceitei responder às perguntas que você me fez e entrei no jogo, mas pra falar a verdade, ando sem paciência com a branquitude, de classe média sobretudo, pois a elite eu nem encontro. Eu é que deveria estar lhe questionando, mas ao invés disso nos bombardeiam de coisas do tipo “porque vocês não falam que todas as vidas contam e não sό as negras?” ,“Porque você diz que você é negra, eu não te vejo negra, vejo que somos iguais” ou ainda “porque não falar de consciência humana, ao invés de consciência negra?” é confortável esse lugar das perguntas. Da próxima vez eu quero que você me responda, por exemplo, o  porque de você nunca ter sido barrado nos aeroportos internacionais, porque você nunca foi barrado pela polícia no Brasil, aqui na França ou em outros países onde já esteve? Porque você não tem medo de sair à noite sozinho? Porque sua cor e seu biótipo estão em todas as partes, na televisão, nas multinacionais, na política, na arte dita universal? Porque você nunca odiou sua cor, seu cabelo, sua aparência a ponto de querer mudá-la? Porque você nunca foi insultado em base ao seu corpo? Porque sua família nunca foi escravizada? Porque você sabe quem são seus bisavόs e onde eles nasceram e eu não?  Entende ? Mas fica para próxima vez. 

 

Fabiane Albuquerque é socióloga, pesquisadora pela Unicamp e feminista negra.

 

Michele Carlino é jornalista, trabalha na Euronews, na França. 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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