Os olhares racistas causam constrangimentos

“Você tá dirigindo um carro

O mundo todo tá de olho em você, morou? Sabe por quê? Pela sua origem, morou irmão?” Racionais MC´s

Por Ricardo Corrêa para o Portal Geledés

Freepick

“Entramos em uma loja de roupas para comprar umas peças, e num descuido de minha parte o meu filho de 10 anos abriu a mochila para pegar o pacote de bolacha pra comer. Fiquei desesperada, arranquei da mão dele e rapidinho fechei a mochila”. Esse é o relato da minha amiga, Fernanda (nome fictício), sobre a situação que a deixou bastante nervosa numa loja no centro de São Paulo. E continuou “Imagine se alguém visse a gente com a mochila aberta, poderiam pensar que estávamos roubando alguma coisa. Quem é negro precisa estar sempre atento.” Lamentei muito o ocorrido e sabia perfeitamente quais os sentimentos que a acometeram naquele momento. Nós, negros, vivemos aprisionados em estereótipos racistas e impedidos de sermos naturais nas atitudes onde quer que estejamos, portanto, o que aconteceu com a Fernanda não é novidade para a maioria da população negra. Os estereótipos pavimentam caminhos que conduzem aos assassinatos, encarceramentos e empobrecimento dos negros, e operam nas atitudes dos opressores e oprimidos.

Os corpos humanos cujos traços demonstram a descendência africana são vistos de maneira negativa devido ao projeto racista que construiu infundados argumentos, assim possibilitando o exercício de plurais formas de violência sobre os afrodescendentes. E como a televisão é um meio de comunicação com considerável alcance, os estereótipos atingiram maior difusão em seus programas. Alexandre Rodrigues, o Buscapé de Cidade de Deus, fez a seguinte declaração “Já entrei na televisão sabendo como seria. Meus personagens sempre foram motorista, empregado, escravo. Nunca me deram um médico para fazer, um empresário.”[1] Nesse sentido oexecrável foi difundido como monopólio das pessoas negras; a estética é hipersexualizada, embrutecida. O padrão de beleza e os comportamentos com viés eurocêntrico tornou-se a norma, assim sendo o ser negro tornou-se o ‘desvio da norma’. Somos associados à feiúra, a perversão, a arruaça e a criminalidade. Para o sucesso dessa especificidade o racismo eliminou a individualidade e construiu uma leitura que atinge a população negra sem exceção. Edith Piza explica “(…) o lugar do negro é o lugar de seu grupo como um todo e do branco é o de sua individualidade. Um negro representa todos os negros. Um branco é uma unidade representativa apenas de si mesmo”.

As conseqüências são variadas, mas destacarei somente os olhares racistas que provocam constrangimentos, e para tanto ofereço a minha experiência como testemunho: inúmeras vezes me barraram em porta giratória de bancos, as pessoas colocam os pertences em posição mais íntima quando me aproximo, ou atravessam a calçada para não ficarem próximas, seguranças me vigiam dentro de lojas e supermercados, os assentos ao meu lado no transporte público quase sempre ficam vazios, ou são os últimos a serem ocupados, e “enquadro” policial não foram poucos. No início até pensava que era coisa da minha cabeça, mas ao compreender a condição histórica do negro, e as experiências de outros negros, acabei entendendo que as situações eram fenômenos racistas.

Em se tratando de seres humanos o ambiente externo é determinante, assim sendo a atitude da Fernanda é o reflexo de experiências constrangedoras. As humilhações apresentadas em nossas vidas atingem a subjetividade e desenvolvem neuroses. No clássico “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Frantz Fanon dissertou sobre o complexo que molda os comportamentos naquilo que chamou de “mundo branco”. Para o autor os negros desenvolvem comportamentos para se parecerem com as pessoas brancas, ou buscam sempre causar alguma surpresa, admiração. É como se gritássemos o tempo inteiro “eu sou um negro diferente!”. Espero que a luta pela emancipação da população negra consiga mudar o paradigma de comunicação existente, sobretudo na linguagem e suas representações, pois a sociedade precisa compreender que a cor da pele não define o caráter das pessoas. Não podemos continuar nos preocupando com o que estão pensando sobre nós. Que caiam definitivamente os grilhões!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FANON, Frantz.Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.

PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada da branquitude.In: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.

[1]Entrevista com Alexandre Rodrigues

Disponível em: <https://revistatrip.uol.com.br/trip/entrevista-com-alexandre-rodrigues-o-buscape-de-cidade-de-deus> . Acesso em: 21 ago. 2019.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Vídeo mostra Lázaro Ramos explicando para filha sobre cabelos crespos: “Nossa coroa”

O ator Lázaro Ramos abordou conscientização e ancestralidade ao compartilhar um...

Suspeito de matar rapper Tupac Shakur em 1996 é preso nos EUA

O suspeito de assassinar a tiros em 1996 o...

A presença de uma Juíza Negra no STF é uma questão de coerência, reparação histórica e justiça

A Constituição Federal, estabelece como objetivo da República Federativa...

Banco do Brasil é alvo de inquérito inédito sobre papel na escravidão e MPF pede reparação

O Ministério Público Federal (MPF) notificou o Banco do...

para lembrar

‘Constranger os racistas é mais que necessário’, afirma psicólogo

CORREIO ouviu o presidente do Conselho Regional de Psicologia...

Davids critica postura de Platini perante o racismo: “Deixe a Uefa”

O astro holandês Edgard Davids se irritou com...

Softwares de reconhecimento de fala de empresas entendem menos negros do que brancos

Os sistemas de reconhecimento de fala estão se popularizando...

Idosa acusada de racismo é presa em Pirassununga

Uma bibliotecária com 60 anos de idade foi...
spot_imgspot_img

‘Dicionário das Relações Étnico-Raciais Contemporâneas’ convida ao aprendizado

A dimensão étnico-racial vem ocupando lugar essencial para a análise social, política, econômica e cultural do Brasil e se tornou um dos temas mais...

Ambiente escolar é onde mais se sofre racismo, diz pesquisa

Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Referência Negra Peregum (Ipec) e Projeto SETA mostra que 38% dos entrevistados disseram que escolas, faculdades e universidades...

Letramento sobre questões raciais é fundamental contra as discriminações sofridas por mulheres negras no mercado de trabalho

As disparidades de oportunidades, cargos e salários para as mulheres negras no mercado de trabalho não são recentes e têm sido demonstradas por diversos...
-+=