Com lançamento previsto para breve, na cidade de São Paulo, o documentário “Liberdade não é só Japão“, de Alexandre Kishimoto, celebra, segundo seu diretor, uma aliança entre pessoas negras, indígenas e amarelas no bairro paulistano da Liberdade.
Esse filme é sintoma de um processo em andamento na Pauliceia de resgate da memória negra de uma cidade brasileira que tem a maior população afrodescendente, talvez agora no caminho de transformar em realidade o verso da canção “Sampa“, de Caetano Veloso, que a chama de “o mais possível novo quilombo de Zumbi”.
Produzido pelo Instituto Tebas e pela Esquisito Filmes, o filme sintetiza a aula pública realizada em setembro na praça da Liberdade em resposta à montagem de um imenso palco sobre a estátua de Madrinha Eunice, fundadora da escola de samba Lavapés, a paulistana mais antiga, daquele local.
“Pessoas negras, indígenas e amarelas se manifestaram contra as tentativas de imposição de uma história única para a Liberdade —na qual o bairro seria unicamente japonês, afirmando a diversidade étnica e cultural de seus moradores e ocupantes”, afirma o material de divulgação do documentário.
A cerca de duas quadras da praça da Liberdade, há um novo ponto de afloramento da memória negra da cidade: é a capela dos Aflitos, construída em 1779 como parte de um antigo cemitério, onde eram enterrados escravizados, indígenas, indigentes, muitos executados no largo da Forca, antigo e não casual nome da praça da Liberdade.
A descoberta de restos mortais desencadeou um movimento que levou a prefeitura a aprovar a construção no local do Memorial dos Aflitos, um espaço de resgate de memória cuja configuração final ainda está em disputa.
Em declaração publicada por Marcos Zibord, da ANF (Agência de Notícias das Favelas), um dos padres responsáveis pela capela, o padre José Enes de Jesus, comentou a descoberta das ossadas: “Existe um lado místico, transcendente. É muito importante buscar, de todas as maneiras, desenterrar aquilo que historicamente foi soterrado. Não sei por que isso tudo está vindo à tona agora, mas a gente acredita que o homem lá de cima tem o seu tempo. Uma coisa puxa a outra”.
Também não muito longe dali, outra descoberta exibiu a memória negra e motivou o movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai. As obras da futura estação Saracura/14 Bis, da linha 6-Laranja do metrô, que desalojaram a escola de samba Vai-Vai, fundada por descendentes do quilombo Saracura, onde atualmente é o bairro do Bixiga, revelaram um novo sítio arqueológico, com vestígios de um antigo quilombo.
Entre as reivindicações do movimento estão a mudança de nome da estação de metrô, de 14 Bis para Saracura/Vai-Vai, educação patrimonial para que as histórias sejam conhecidas por mais pessoas e museu com as peças encontradas na obra na própria estação ou no seu entorno.
A jornalista Luciana Araújo, moradora do bairro e integrante do movimento, afirmou ao blog Guia Negro que “hoje o único território quilombola em reconhecimento na área urbana de São Paulo é o Saracura, mas permite que outros também tenham esse direito no futuro”.
Território de luta ideológica, a memória da cidade de São Paulo precisa ser iluminada por novas forças vivas para que a verdade sobre a grande presença desde sempre negra em sua população não permaneça encoberta por relatos permeados pelo desejo de branqueamento característico de nossas elites.
Iniciativas como passeios guiados pelos locais de memória da cidade ou mesmo um filme como “O Pai da Rita”, de Joel Zito Araújo, cujos personagens são moradores do Bixiga e compositores da Vai-Vai, evidenciam movimentos que inspirarão uma outra narrativa que a cidade faz sobre si própria.