Ações afirmativas sob ataque

Negras, quilombolas e indígenas nas universidades incomodam porque abalam a hegemonia

O receio e o sentimento de ameaça sentidos por parcelas da população como reação à crescente presença negra em lugares antes considerados apenas para brancos pode ser o impulso que dá origem à recente retomada dos ataques às políticas de ação afirmativa —no caso, as cotas raciais nas universidades, iniciativas essas que se colocam na contramão da luta pela democracia multicultural.

Até bem pouco tempo atrás tínhamos nas universidades uma cota não explicitada de quase 100% para a juventude branca. Nos últimos anos, no entanto, provocada pelo movimento negro e de mulheres negras, a sociedade brasileira vem sendo obrigada a reconhecer e debater essa relação de dominação na busca de outro tipo de sociedade e novos pactos civilizatórios.

Porém, se cresce a pressão dos movimentos sociais, também cresce a resistência e são retomadas narrativas, antigas, que pensávamos já mortas, focalizando classe versus raça, ou seja: a luta racial vai “dividir a classe trabalhadora”. Ou ainda sobre “grupos étnicos” ou “movimentos identitários” que viriam para sequestrar o debate político verdadeiro, sem falar na ideia surpreendente de que as cotas iriam “racializar” nossa sociedade “não racista”.

A verdade é que as ações afirmativas e as cotas provocam uma redefinição do modo de funcionamento que torna homogêneas e uniformes as universidades brasileiras, induzindo não só a alterações nos processos, nas ferramentas, nos sistemas de valores mas também nos perfis de docentes, discentes e pesquisadores que ajudam o país a se pensar. Ou seja: ações afirmativas e, dentro delas, as cotas pretendem alterar um processo de estruturação institucional excludente que permaneceu intocado durante quase toda a história do país.

A entrada de outros grupos nas universidades, como mulheres negras, quilombolas e indígenas, incomoda porque abala a hegemonia e traz novas perspectivas e paradigmas, oferecendo a negras e negros um papel de protagonistas da ação política contra a expropriação de riquezas e a brutalidade que sustentam a sociedade e o regime político no qual vivemos. E aí vamos ter que enfrentar o desafio de refletir sobre o que a mudança desses sistemas monolíticos fará com a vida das pessoas que dele vêm se beneficiando.

Como informa o economista Mario Theodoro em seu livro “A Sociedade Desigual: Racismo e Branquitude na Formação do Brasil”, o país teve —e perdeu— três oportunidades históricas de alterar a dinâmica da enorme desigualdade que o caracteriza.

Na primeira metade do século 19, o estabelecimento de um imposto exorbitante tolheu a ascensão social do grande número de africanos libertos que exerciam as profissões de pedreiros, alfaiates, sapateiros, entre outras, o que impediu a criação, em escala ampla, de uma classe média negra no país.

O segundo momento destacado é o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980, quando o crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos! No entanto —como explica Theodoro—, o preceito que orientou a política econômica desse período, o de maior prosperidade vivenciado pelo país, foi crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade.

Mais recentemente, entre 2004 e 2014, quando políticas do governo federal retiraram mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014.

Para ser enfrentada com eficácia, essa persistência da desigualdade em prejuízo da população negra justifica a implementação de políticas públicas ou privadas de ação afirmativa —das quais as cotas são uma modalidade— para um efetivo combate às diferenças e uma real promoção da equidade entre brancos e negros no trabalho, saúde, educação e moradia.

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