Documentário Terão de Nos Matar Primeiro retrata ataques à cultura e artistas do Mali por extremistas que declararam guerra à música

Filme mostra como bandas do país estão resistindo à ocupação de terroristas

Por JULIANA RESENDE, do RollingStone

Caso Bono tivesse assistido ao documentário Terão de Nos Matar Primeiro (2015), sobre como os músicos do Mali, ex-colônia francesa na África, estão sendo banidos do país por fundamentalistas integrantes e simpatizantes do Estado Islâmico, provavelmente não teria ficado tão chocado com a inclusão de um show de rock dentre os alvos de uma série de atentados que o grupo terrorista perpetrou em Paris na última sexta, 13.

Bono, no calor do cancelamento dos shows da turnê iNNOCENCE + eXPERIENCE, do U2, na capital francesa (que até agora não foram remarcados), declarou que aquele era “o primeiro ataque direto à música desde que começou essa tal de Guerra ao Terror, ou chame lá como for. É muito perturbador”. Mas a música, assim como outras manifestações artísticas, já vem sendo duramente atingida em países ocupados pelo Estado Islâmico.

No Mali, um dos países de maior tradição musical do mundo, a coisa tomou tamanha proporção que em 2013 a cineasta norte-americana Johanna Schwartz, então grávida de sete meses, resolveu deixar para trás tudo que fazia em Londres, onde mora, pegar uma câmera, algumas roupas e o primeiro voo para Timbuktu. “Foi tudo muito rápido e arriscado. Colocamos toda nossa energia e recursos neste projeto, pois sabíamos da urgência dele. Desde a ocupação do norte do Mali pelos extremistas, em 2012, músicos tiveram de ir para o exílio ou encarar as consequências – ameaças, amputações, torturas e até a morte”, diz Johanna. A diretora tinha só alguns contatos locais – basicamente amigos – e acabou fazendo uma radiografia politicamente densa e musicalmente irresistível sobre a situação no Mali.

A ocupação por extremistas começou pela fronteira com o Saara e não tardou a se espalhar. “Em 2013, o governo do Mali suplicou à França para intervir e uma parte do país foi retomada. Mas o problema é que eles ainda estão lá, senão operando à luz do dia, escondidos, esperando o momento certo para atacar”, conta Johanna. “Há muito medo. Nos últimos oito meses os ataques se intensificaram. Para completar, rebeldes e forças do governo se digladiam no sul, deixando a região ainda mais vulnerável. Um dos momentos mais tensos que passamos foi um show que filmamos em Bamako”.

Rádios foram fechadas e instrumentos musicais queimados em praças públicas na fase mais crítica, que agora, segundo Johanna, deu uma arrefecida. “Alguns artistas estão retornando e até fazendo shows, mas sempre de um jeito mambembe, beirando o clandestino. Alguém tinha de mostrar isso ao mundo”, diz a diretora, que investiu o próprio dinheiro na produção, em parceria com a Mojo Musique, Together Films e Spring Films (a BBC entrou depois e está distribuindo o documentário). “Não sei no que esse banimento cultural no Mali vai resultar a longo prazo”, reflete a diretora. “Podemos afirmar que o que acontece no Mali é muito semelhante ao [que acontece em] outras regiões ocupadas por extremistas”.

O resultado é um registro poderoso – e, claro, extremamente perturbador – do que populações e artistas acuados pelo jihadismo em países do Oriente Médio e da África vêm passando sob o rigor e o fundamentalismo da sharia, lei islâmica em que não há separação entre a religião e o direito, sendo baseada nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes “religiosos”. Terão de Nos Matar Primeiro foi exibido no 59º BFI London Film Festival, em outubro, quando a diretora falou com aRolling Stone Brasil e ocasião em que foi lançada a campanha #TheMusicinExileFund (“O Fundo da Música em Exílio”). No evento, ocorreu ainda um show da banda SongHoy Blues, que o filme acompanha, em uma noite memorável no The Rah Rah Room, em Londres. O filme também foi exibido no Festival do Rio sem muito alarde – e pode voltar ao Brasil na edição de 2016 do In-Edit.

Terão de Nos Matar Primeiro é um libelo corajoso e desafiador, que mescla muito som, cenas violentas de guerra, contextualiza o levante separatista do povo tuaregue e dá voz a gente em campos de refugiados e a figuras-chave da música do Mali. Mais do que provocativo, o documentário denuncia o obscurantismo que se debruça sobre todos os territórios dominados por esses terroristas que se acham no direito de proibir manifestações divinas do espírito humano – como a música – em nome de Alá. “É importante deixar claro que a religião é apenas uma desculpa para legitimar uma atividade que visa o poder e enriquecimento ilícito”, ressalta Johanna.

Instalados no vácuo do caos deixado pela invasão do Iraque pelas potências ocidentais, depois do 11 de setembro, esses grupos estão dinamitando a herança cultural de berços da civilização, como Mesopotâmia, Pérsia e o atual território do Mali, a sede de três impérios da África Ocidental que controlava o comércio transaariano: o Império do Gana, o Império do Mali (origem do nome do país) e Império Songhai (origem do nome da banda que o filme acompanha). A independência veio em 1960 e hoje metade da população vive abaixo da linha da pobreza, com menos de US$ 1 por dia.

A diretora, que mergulhou nessa história por pura audácia e segue convicta, conversou mais uma vez com a reportagem depois dos ataques a Paris. Ela estava exibindo o filme na Estônia quando comentou, por e-mail, o ocorrido. “A música, seja sacra, pop, Sex Pistols, Public Enemy, e, sim, Eagles of Death Metal, é um forma de expressão de identidade e de transmissão cultural. É também uma forma de afirmação de escolhas, liberdades, diferenças. Por isso, tem sido alvo desses radicais. Mas a mensagem que emana dos músicos do Mali é a mesma de todos os envolvidos na cena musical em Paris: a música não vai parar e, a cada derrocada, ela voltará mais forte.” A produtora Sarah Mosses, da Together Films, diz que Terão de Nos Matar Primeiro “está sendo apontado como uma peça importante no diálogo sobre essa questão”– ou seja, sobre os possíveis caminhos da produção cultural versus o extermínio dela que é proposto pelo extremismo islâmico.

Enquanto o SongHoy Blues – cujo trabalho lembra uma versão mais contemporânea do som do mestre malinês Ali Farka Touré – e outros músicos do Mali, como Khaira Arby, Fadimata “Disco” Walet Oumar e Moussa Sidi, simplesmente se recusam a silenciar, Bono tocou na mesma tecla naquele sábado, 14, pós-atentado em Paris: “A música é muito importante. Aquelas pessoas [que morreram na casa de shows Bataclan, um dos alvos na capital francesa] são dos nossos. Podia ser eu no palco e você na plateia”, declarou o frontman irlandês. “Eu acho que o U2 tem um papel a cumprir no sentido de afirmar que essa gente não vai dominar a nossa agenda, nem traçar o rumo das nossas vidas. Mal posso esperar para remarcar nossas datas em Paris”, completou o cantor.

Se Bono comprou essa briga só agora, nunca é tarde para se juntar a outros nomes da cena pop, como Damon Albarn, do Blur, Gorillaz e outra dezena de projetos musicais como o Africa Express. É ele quem está por trás dos shows que a SongHoy Blues tem feito pela Europa. Já a trilha de Terão de Nos Matar Primeiro foi produzida por Nick Zinner, do Yeah Yeah Yeahs, convidado por Albarn. A conexão do maestro-mor do Brit Pop com o Mali começou com o álbum Mali Music (2002). Albarn foi também à Nigéria gravar com o baterista Tony Allen, e depois à República Democrática do Congo, onde registrou o disco Kinshasa One Two. Em 2013, veio Maison Des Jeunes, primeiro trabalho do African Express, reunindo diversos músicos africanos.

Damon Albarn tem um longo currículo de ativismo antibélico, tendo se manifestado publicamente contra as invasões do Afeganistão e do Iraque e a participação do Reino Unido. Ele encabeçou o movimento Stop the War Coalition, se referindo à coalizão de guerra formada por Estados Unidos e Reino Unido, e fez um discurso que surpreendeu quem assistia ao MTV Europe Awards em 2001. “Foda-se a música. Bombardear um dos países mais pobres do mundo é errado. Nós temos voz e vamos fazer tudo o que pudermos para evitar isso.”

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