Decidi que estudaria comunicação social no dia que tive a chance de entrevistar Maria Aparecida Aves, mulher negra, guerreira e uma das primeiras moradoras do Município onde nasci: Nova Iguaçu.
O ano era de 2010 e eu fazia parte do jovem repórter, um dos projetos de comunicação mais importantes existentes na história da cidade que potencializou quem lutava por várias Nova Iguaçu.
Me lembro como se fosse hoje. Era um período eleitoral quando o Julio Ludemir, então editor chefe do blog CulturaNI, onde eram publicadas nossas produções assim que cheguei ao projeto, disse: você é de Santa Rita, não é, Yasmin? Eu gosto de estimular o intercâmbio, de vocês irem para outros bairros, mas dessa vez acho que você deveria entrevistar uma personalidade de seu bairro.
Que presente. Que honra. Foi a entrevista mais incrível que fiz na vida. Filmei, fotografei, escrevi, me emocionei. Dona Maria narrava uma trajetória de resistência, de escravidão, de exploração. Mas, sobretudo, de amor, de elevação, de fé no que se faz, de respeito e de carinho. Foi ali que descobri o que era ancestralidade. Dona Maria vivia num lugar extremamente humilde. Mas para ela estava tudo certo porque assim dizia: eu tenho forças para estar te olhando, te contando a história dessa cidade ao mesmo tempo que olho as galinhas, as plantas e meus netos.
A última vez que vi dona Maria foi no final do ano passado. Estive em sua casa, comemos uma broa de milho com café, preparado por ela. “Não tenho muita coisa a te oferecer, mas tenho um cafezinho”. E ai de mim se não topasse!
Lembro que tive que falar um monte de referência para ela lembrar de mim, mas assim que ela lembrou, abriu um enorme sorriso, daqueles que só quem viveu muito consegue iluminar e renovar nossas energias. “Entre, menina! Vou colocar uma cadeira para a gente conversar”. Era incrível ver dona Maria sorrir. E ela sabia abraçar, era um daqueles abraços apertados que a gente só recebe de quem a gente ama muito.
Naquela tarde conversamos sobre o dia que ela atravessou uma ponte em Minas Gerais e caiu, e por isso tinha uma mão acidentada. Contou como foi vir a pé para o Rio de Janeiro, narrou memórias sobre sua família de Congo, me mostrou com orgulho as homenagens que artistas da cidade fizeram para ela, como a do fotógrafo Paulo Santos que fez um trabalho belíssimo com as personalidade negras de Nova Iguaçu.
Mas há uma cena que ela narrou muito marcante para mim: “ainda lembro que eu brincava com a saia da princesa numa fazenda enquanto minha mãe trabalhava.”
Ali naquelas palavras veio Debret, especificamente a pintura “uma senhora brasileira em seu lar”. Provavelmente dona Maria viveu o período escravocrata, ainda que a escravidão já tivesse sido abolida no Brasil.
No dia da eleição desse ano, algumas semanas atrás, passei em frente ao portão de dona Maria e vi que o quintal dela havia mudado de cor: não tinha cachorro latindo, as plantas estavam diferentes e as galinhas não passeavam pelo chão de areia. Não havia a cadeira de madeira onde ela costumava se sentar e nem no varal secavam os lenços brancos que ela adorava colocar sobre os cabelos. Não tive coragem de chamar por dona Maria, deu um nó na garganta. Algo me dizia, mas eu não quis aceitar. Rejeitei.
No meio dessa loucura que a gente se perde da cidade, na velocidade das coisas, no caos, resolvi pesquisar o nome de Maria Aparecida Alves. A primeira notícia foi “aos 117 anos, morre em Nova Iguaçu uma das mulheres mais velhas do mundo”.
Mora em mim uma tristeza imensa. Principalmente porque a morte de Maria Aparecida não foi comentada pelos órgãos responsáveis pela memória de Nova Iguaçu. E isso diz muito sobre os reais interesses dos gestores que cuidam da valorização da história e cultura da cidade. Dona Maria foi uma das primeiras moradoras de Nova Iguaçu, vivas até então, e teve seu processo de vida e luta invisibilizado. Essa mulher deve ser lembrada para sempre na história da cidade e eu lutarei durante a minha trajetória no campo da comunicação e cultura em Nova Iguaçu, pelo resgate da história dessa mulher tão importante para nós. E só de lembrar dela já me reconstruo para continuar, para lutar e celebrar a vida. Sua história não termina aqui.
Fico lhe devendo o nosso feijão com tudo dentro do jeitinho que sua mãe fazia e que a senhora prometeu preparar no dia do meu aniversário. Essa, com certeza, é a maior dívida que levarei para a vida.
Mas sigo com força e foco em tudo aquilo que me passou e destaco uma: “bonito é viver, minha filha.”
Sim, foi bonito lhe conhecer, o maior presente: exatamente esse de entender que celebrar a vida é um estado de elevação. A gente só pode viver muito com amor. Sei que a vida lhe ensinou isso e senhora repassou a mim e a tantas pessoas que tinha o prazer de receber em sua casa. Obrigada pela reconexão, rainha. Serás lembrada.
Fonte: Brasil Post