Fiquei com uma fala na cabeça de uma mulher branca na ocasião da chegada das médicas cubanas ao Brasil: “Estas médicas têm uma cara de empregada!” Deixei ali, parado na garganta, quieto, mas pensei muito sobre isso, e como pensei! Como boa mineira, deixei a coisa se aquietar e, juntando outras, a reflexão deu um “caldo”.
Em 2018 fui visitar minha família em Belo Horizonte e, passeando num shopping com minha irmã, ela, ao ver uma mulher negra de cabelos alisados se virou pra mim e disse: “Porque não deixa aquele cabelo crespo como as atrizes? Desse jeito fica a cara da pobreza”! E mais um episόdio, dessa vez em Jundiaí, somou-se ao meu borbulhar interior. Eu estava em um restaurante italiano e a proprietária dirigiu-se a um cliente para falar de outra frequentadora do local, que eu conhecia, da seguinte forma: “Metida daquele jeito e com aquela cara de pobre?” Imaginei o que não falava de mim pelas costas, pois aquela com a cara de pobre era negra como eu.
O que essas falas têm em comum? O fato de a pobreza ser associada à negritude. Para o senso comum, pobreza e negros (as) são sinônimos, e não falta “constatação”, pois, para um olhar superficial, o grande contingente de pobres e negros desse país está nessa condição porque quer, porque não se esforçou, como se não houvesse um projeto da elite branca para nos manter nessa condição e a si na posição de domínio.
Não parou por ai, algumas pessoas, pensando me elogiar às vezes soltam: “Você tá a cara da riqueza!” Me incomodo sobremaneira com isso, pois geralmente tentam me aproximar da branquitude e da elite. Esse incômodo encontrou respaldo no trecho abaixo do diretor de cinema e escritor italiano Pier Paolo Pasolini:
(…) até minha geração, os jovens tinham diante de si a burguesia como “objeto”, um mundo “separado”. Podíamos observar a burguesia, assim, objetivamente, desde fora. (…) O modo para observar objetivamente a burguesia nos era oferecido, segundo o esquema tradicional, pelo “olhar” posto sobre ela por parte “do não burguês”, operários e camponeses”.
É isso! Para olhar alguém, uma classe social, suas contradições e mazelas, é preciso estar fora dela, separado, “desde fora”, pois é o estranhamento que nos permite enxergar coisas que o outro não vê sobre si mesmo. Mas se nόs, negros e negras das classes populares, adotamos como projeto de vida nos aburguesar e nos embranquecer, quem vai olhar para a burguesia branca e apontar seu projeto narcísico de tornar o mundo e os outros extensão de si mesma? Eu não posso embranquecer-me, tampouco “virar a cara da riqueza”, pois me identificando com o modelo branco e a elite, eu a perco de vista, tampouco tenho capital econômico para isso, logo seria somente uma cόpia fajuta.
Não podemos ter como meta de vida nos assemelhar à branquitude e à burguesia, distanciando de tudo o que é popular para aderir padrões que violam nossa existência e ameaçam a sobrevivência na terra.
Existe, na nossa sociedade, um projeto de ódio ao pobre e a tudo o que é popular, encabeçado pela burguesia e colocado em prática pelas instituições, mídias, igrejas neopentecostais e agentes sociais. Esse projeto apresenta a riqueza como ideal de vida e de sucesso e os ricos como gente distinta, fina, civilizada, enquanto, na outra esponda, a população negra e periférica, estampa os jornais quando se trata de criminalidade. Negros não cometem mais crimes, como acreditam os arautos da moralidade, é que a burguesia se protege e aos seus para que desviemos o olhar para os nossos iguais e a deixemos em paz para nos representar e se autorrepresentar com o título de “cidadã de bem”.
Anos atrás trabalhei no projeto do governo federal chamado Rede de Educação Cidadã, criado pelo governo Lula, como educadora popular no Estado de Goiás. Em uma das oficinas de formação, com um grupo de Sem Teto, uma senhora disse: “Vocês já notaram como rico é educado até para comer?” De onde ela tirou isso? Possivelmente das telenovelas em que o rico sequer toca a comida. Na vida real, rico é vulgar, dá chiliques, arma barraco, é arrogante, mal educado e comete crimes dos mais variados, vide o caso da “advogada internacional”, do “desembargador com contatos”, da moça embriagada que humilhou um trabalhador em um quiosque dizendo: “meu pai é muito importante”, do super macho que depredou uma sorveteria em Campinas, do jovem que torturava a própria avό, do “esquizofrênico” de Valinhos, do morador de Copacabana que matou um vendedor ambulante jogando um botijão de gás do alto do seu apartamento etc. De longe, parecem “cheirosos”, limpinhos e bem educados, mas já dizia Falcão “eu sei que a burguesia fede, mas tem dinheiro para comprar perfume”. Ao nos vender a imagem dos ricos, glamorizam até as suas baixarias.
No seu livro Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia, Adela Cortina fala da fobia de pobres, basta ver como eles são recebidos nos Shoppings Centers, nos bairros de ricos, nos aeroportos, pelas balas “perdidas” da polícia, pela gestão do João Dória, que no cargo de prefeito de São Paulo teve a coragem de propor uma “ração humana” feita com os restos de comida comprada dos seus amigos empresários. O mesmo também mandou acordar moradores de rua com jatos de água em um dos dias mais frios do ano e derrubar um prédio com pessoas dentro. É essa gente queremos copiar a cara?
Os pobres são rejeitados até mesmo pelas igrejas neopentecostais como projeto de inclusão social, como protagonistas da história coletiva desse país, mas aceitos como financiadores das igrejas e dos seus pastores. Até o assistencialismo está em baixa, é sό prestar atenção na máxima, “foi Deus quem me deu”. Se não tem, Deus não deu e se Deus não deu, não foi abençoado.
Há um ódio ao pobre e a tudo que ele toca. É uma ideologia perversa, pois apresenta alguns como fracassados e outros como vencedores nessa corrida desigual pelo consumo e por um lugar no topo da pirâmide social. Nόs, negros e negras, não estamos isentos de passar a vida construindo perspectivas de futuros (e caras de ricos) que nos foram apresentadas como receituário de vida, sem jamais nos perguntarmos se ao deixar nossas raízes, nossas culturas e tradições, isso tem nos trazido mais vida e mais plenitude.
Nas últimas eleições, meu olhar se voltou para os corpos. Vi tantas candidatas e eleitas com cara de povo. É isso que a gente deveria ver na política, no judiciário, na televisão de forma digna, na medicina e em todos os âmbitos da sociedade. Em contrapartida, vi imagens dos candidatos do PSDB, DEM, PSL e outros, gente de comercial de margarina. Como o Brasil dos ricos pode governar/legislar para os que têm cara de pobre? Criando no povo o sentimento de inadequação, de vergonha e de inferioridade. O povo precisa superar o medo e o trauma de se ver e parar de perseguir um modelo que nos foi dado para que nos odiemos e odiemos os nossos.
Na foto acima, trago o rosto de Sônia Cleide, mulher negra, periférica, candidata a vereadora pelo Partido dos Trabalhadores de Goiânia, ameaçada de morte durante as eleições para que desistisse da candidatura. O que ela tem a nos ensinar? Basta olhar seu rosto e corpo ereto, seu olhar firme, sua vestimenta, sua coragem de ocupar o espaço público sem se embranquecer ou aburguesar. Sônia não é Fordelis, por isso incomoda, “Fordelis” não incomodam, “Sônias” e “Beneditas”, sim. Sônia Cleide é a cara da pobreza para essa sociedade estruturada no racismo e no classismo, que não aceita inclusão e justiça social. Essa cara de pobre ameaça a supremacia branca e o stablishment desse país. E não somente ela, mas todas nós que recusamos a assimilação.
Assim como Sônia, quero olhar bem na cara da branquitude e da burguesia brasileira, incluindo a classe média que a copia em tudo, e sentir estranhamento, incômodo, não identificação, nem na aparência, nem nos desejos e projetos de vida. Quando me falam ou ouço que uma mulher negra tem cara de pobre, lembro-me do conto Chapeuzinho Vermelho:
– Para que esses olhos tão grandes?
-É para te olhar melhor.
-Para que esse nariz tão largo? É para te cheirar melhor.
-Para que esse cabelo tão armado e crespo?
-É para melhor ser vista.
– Para que essa cara de pobre?
-É para melhor te analisar.