Edivaldo Ernesto é uma das atrações da 13ª edição do “Vivadança”, que começa nesta terça-feira (16) e segue até o dia 29 de abril em Salvador. Evento reúne cerca de 450 artistas e 30 espetáculos de 12 paíse
“Fui alvo de muito preconceito pelo fato de ser negro e de ter saído da África. Então, uso a dança para mostrar que ser negro não quer dizer que eu seja perigoso, que eu seja pobre, e para que as pessoas entendam que não podem criar impressão falsa pela aparência. Busco com a dança uma saída para isso tudo, uma liberdade”.
Assim o coreógrafo moçambicano Edivaldo Ernesto descreve como a dança, uma paixão de infância, tornou-se para ele uma forma de se expressar através dos movimentos corporais, sobretudo para combater preconceitos, e um meio que o permitiu deixar o seu país de origem, e a vida humilde que tinha com a família, para “ganhar o mundo”.
Dançarino, professor, coreógrafo e especialista em improvisação, Ernesto é uma das atrações da 13ª edição do festival internacional “Vivadança”, que começa nesta terça-feira (16) em Salvador e segue até o dia 29 de abril. O evento, que celebra o mês da dança, vai ocupar 10 espaços da cidade com uma programação que reúne cerca de 450 artistas e 30 espetáculos vindos de 12 países.
Ernesto vai abrir o festival com sua peça intitulada “Tears” (ou Lágrimas, em português), na terça, às 19h, no Teatro Vila Velha.
“Tears é um solo que criei em 2015, que tem uma reflexão dos momentos que passei durante todo o meu percurso depois que saí de Moçambique”, afirma.
“Me expresso na peça de uma forma política e mais artística sobre tudo que vivi na Europa e outros lugares que eu vim passando com o meu trabalho. Falo de caráter, de princípios, daquilo que a gente deve realmente se atentar nas pessoas e da minha indignação com os preconceitos. Tento buscar uma saída”, conta.
Ernesto deixou Moçambique em 2007, quando recebeu uma proposta para se apresentar numa companhia de dança alemã. Movido pelo sonho de desbravar o mundo, deixou o pai, a mãe e os sete irmãos para trás e foi morar na Europa.
Desde então, percorre vários países levando sua arte e tem se destacado pela criatividade nas coreografias e pelas colaborações com artistas de alto prestígio na dança contemporânea, como a alemã Sasha Waltz e o venezuelano David Zambrano.
“Eu viaja para a Europa desde 2003 e 2004, mas sempre voltava para Moçambique. Até que surgiu, em 2007, essa proposta de contrato, para viver lá como residente permanente. Fui o primeiro da família a ir para outro continente pela arte. Depois, outro irmão também acabou deixando meu país. Ele hoje é percussionista e eu sou o único bailarino”, conta.
Foi quando estava com esse irmão que se tornou percussionista que Ernesto disse ter ouvido uma vez, aos 8 anos de idade, em uma rua de Moçambique, uma música que chamou a atenção dos seus ouvidos e o fez se apaixonar pela dança.
“A gente escutou som de tambores e começamos a seguir o som para ver de onde vinha. A cada passo que dávamos, o som ficava mais alto. Então, chegamos em um estúdio, onde vários bailarinos estavam tendo aula. O coreografo perguntou se a gente queria dançar e nós topamos. Era dança tradicional moçambicana. A gente sentiu que era uma coisa que se conectava e foi a partir de então que nasceu essa paixão”, afirmou.
O irmão, com um tempo, parou de dançar e seguiu um rumo diferente. Ernesto, por sua vez, sabia que era aquilo que ele queria para a vida.
Ao receber a proposta da companhia alemã, ele não teve dúvidas de que era a hora de se mostrar para o mundo. A trajetória, no entanto, não foi fácil.
“Sofri muito preconceito pelo fato de ser negro e por ter saído da África. As pessoas sempre olhavam diferente para mim, sobretudo quando viam meu passaporte e meu lugar de origem. Passei por várias situações difíceis e sabia que as dificuldades a mim impostas eram em sua maior por conta da minha cor, da minha origem”, conta.
Apresentação em Salvador
O espetáculo que ele traz a Salvador retrata isso, carrega, como ele diz, muito do “desconforto” que passou até agora. É a segunda vez que o moçambicano vem à capital baiana — a última foi em 2012, quando também apresentou uma espetáculo de dança junto com a companhia alemã.
Os ingressos para a apresentação desta terça do moçambicano no Teatro Vila Velha custam R$ 10 (meia) e R$ 20 (inteira). As entradas podem ser adquiridas pela internet.
“O público vai encontrar em ‘Tears’ a expressão de uma pessoa indignada com todos esses preconceitos que recaem sobre o negro, o africano”, diz,
“Dá para se expressar muito bem através de variadas formas de arte. Mas eu preferi a dança contemporânea, porque me foi oferecida e eu tive experiência. Minha dança carrega muita expressão e estado emocional diferente. Sou muito expressivo através do movimento”.
O corpo negro na dança será destaque na programação do festival Vivadança 2019, que tem algumas atrações pagas e outras gratuitas. O público poderá conferir vários espetáculos com temáticas voltadas para a diáspora africana e debates e workshops nos quais se discutirão a importância do trabalho de artistas negros na dança, suas trajetórias, desafios e enfrentamentos.
“Através da dança contemporânea, da improvisação, descobri muitas coisas sobre a vida, sobre o viver, dançar, mostrar coisas, expor. Apesar das dificuldades que passei, a dança me fez, por outro lado, viajar muito, sair de moçambique para conhecer outros lugares, culturas. E é isso que quero para a vida: explorar o mundo, adquirir mais informações”, diz o moçambicano.
Ele diz que não pensa em morar novamente em seu país natal por já ter se “acostumado com o mundo”, ter adquirido “outros comportamento” e ter “acesso a várias oportunidades não disponíveis em Moçambique”, mas também não esconde a saudade da família e o desejo de voltar para visitá-los.
Ficou bastante preocupado com os parentes quando soube que um ciclone tinha devastado parte de Moçambique e outros países africanos, deixando centenas mortos, em março, mas aliviado depois de saber que a região onde vivem os familiares não tinha sido atingida.
“Seis irmãos meus estão lá. Somente um está na Alemanha. Meu pai e minha mãe faleceram em 2015. Eu queria ter trazido minha mãe comigo. Já estava preparando a vinda dela para morar comigo na Alemanha, mas houve o incidente. Hoje, quando falo com meus irmãos, eles não falam em sair de lá, só me perguntam quando eu volto para visitar. Por mais pobres que as pessoas sejam lá, elas são felizes e não têm muita cultura de sair do país. Eu creio que venho representando o meu país com o meu trabalho, ajudando de alguma forma o meu povo”, diz.
Depois da passagem por Salvador, Ernesto ainda viaja para se apresentar em Brasília antes de retornar à Alemanha. Na agenda, ainda há apresentações marcadas esse ano na Rússia, China, França e Espanha. “A dança mudou minha vida, muito mesmo. Não seria o que eu sou hoje se não fosse pela dança”, comenta.