Socos, pontapés, murros na barriga, cabeça arremessada contra o chão.
Por
O sangue de Rafaela espalha-se no chão da sala.
16 anos, casada. Ano 2012, não 1945. Porto Alegre.
Os gritos são abafados pela mão do companheiro, que a arrasta até o quarto e tranca a porta.
Os segundos torturantes dos ultimos anos e as paredes da casa anunciavam esse dia.
Ela precisava casar para ser mulher, ela precisava de um homem para ser mulher.
Ela conhece José e fica gravida. Se não casasse seria uma vagabunda.
A professora na escola aconselha: Eu casei jovem, você também pode casar. E ela quer casar, afinal ele era homem, e era disso que ela precisava.
A comida não estava na mesa, as panelas voavam para o chão.
A comida não estava ao seu gosto, os pratos voam para o chão.
Cortavam as mãos, os pés, as pernas de Rafaela.
Era uma menina cheia de vida, isso é o que dizem seus vizinhos. Aos 16 anos já constam no corpo as marcas de uma vida dura.
Infância de dor, na casa os gritos, as brigas, as marcas. As marcas hoje no corpo de Rafaela, parecidas com as marcas de sua mãe. Repetição. Inovação.
José, seu agressor. Seu marido. Pai de seus filhos. Seu dono.
É assim que ele aprendeu. Prendam suas cabras que meu bode esta solto, não é mesmo?
Rafaela casou e foi trancada em casa. Afinal José poderia ser corno não?
Se ela ficou comigo, quem garante que não fica com mais 500? Sou homem, ela é mulher e ela é minha.
E hoje o corpo de Rafaela segue sangrando no quarto.
Qualquer semelhança dessa história com noticias que você vê no jornal, ou ouve de histórias de vizinhas, amigas, parentes, ou viveu dentro de sua casa, não é mera coincidência. O inicio desse texto é baseado em diversas histórias reais, em diversas épocas, muitas destas eu mesma acompanhei de perto. Não vou entrar no mérito de todos os fatores que levaram a situação de Rafaela e José até aqui, mas quero levantar uma questão central que perpassa tantas histórias de Rafaelas e Josés, Karinas, Danielas e Renatos: A naturalização do Machismo, o meu direito de ser machista. Talvez nos laudos de autópsias de tantas mulheres vitimas de violência deveriam constar juntamente com a causa da morte a frase: Morreu por machismo. Talvez nos boletins de avaliação de tantos homens agressores deveria constar a observação: Bateu, matou, estuprou por machismo.
Posso medir o machismo? Posso mensurar o machismo? Talvez. Posso analisar a diferença salarial entre homens e mulheres, posso levar em consideração os casos de violência contra a mulher, posso considerar o preconceito contra mulheres cis e trans, posso considerar o cercear dos direitos sexuais e reprodutivos, o machismo esta ali presente e também esta por trás. O machismo esta nas mentalidades, ele esta nas ideias. O machismo esta nas concepções que historicamente inferiorizam e subjugam as mulheres, concepções estas que as colocam como propriedade de um homem, que consideram a mulher um meio: Um meio para a geração da vida, um meio para a manutenção da família, um meio para o prazer do outro e JAMAIS um FIM em si própria.
Hoje mesmo vi a declaração de um grupo que dizia: Não sou contra o machismo, não sou a favor do feminismo, sou a favor da mulher. E assim como esse grupo, temos diversas pessoas defendendo o direito de “defenderem e disseminarem” suas concepções machistas, homofóbicas, discriminatórias. Minha questão é, e eu não tenho uma resposta fechada para essa questão: Até que ponto é meu direito disseminar o machismo, sabendo das consequências que este gera na sociedade. Eu me pergunto, posso não ser contra o machismo e ser a favor das mulheres cis e trans? Sabendo o que pode acontecer por incentivar a concepção de que a mulher é propriedade do homem e um objeto, eu posso ainda assim incentivar o machismo?
Creio na liberdade de pensamento, mas devemos ficar atentos para a linha tênue que separa minha liberdade de pensar o que bem entender, e a defesa de concepções que vão contra os direitos humanos, que vão contra as políticas públicas. Um homem religioso pode ser contra ohomossexualismo porque este é pecado? Bom, é sua crença pessoal. Agora este mesmo homem pode levantar o repúdio ao homossexualismo como uma bandeira da sociedade? Ele pode utilizar seus argumentos religiosos para embasar politicas publicas contra as uniões homoafetivas? Não. Ai temos um grande problema. Uma pessoa pode com base em seus valores morais e religiosos ser contra o aborto? Sim, com certeza. Mas podemos utilizar os mesmos argumentos religiosos e morais para pautar a criminalização do aborto na esfera da saúde pública? Transfiro esses questionamentos para a sala de aula. O profess@r pode defender em uma escola pública e laica que as uniões homoafetivas não devem ser legalizadas? O profess@r pode colocar que as mulheres são estupradas porque não se comportam como mulheres decentes? O professor pode dizer que mulheres trans não são mulheres de verdade dentro de uma escola laica e publica? Até que ponto posso falar o que bem entender em sala de aula? Pergunto até que ponto o educad@r, sendo também formador de opinião, acaba contribuindo para os tristes destinos de Rafaelas, Raíssas, Kerolins e Josés.
A educação não se dá somente nas Universidades e nas escolas tradicionais. A educação, o processo educativo é imenso, ele se dá nas casas, nas ruas, nas associações, nos projetos sociais, na convivência, na conversação, no olhar, no toque. Uma educação não sexista, não machista, não homofóbica é desafio constante e eu me pergunto sinceramente como dialogar, conviver com a educação machista, homofóbica, racista, pois diariamente estamos frente a frente com ela.
Pensar em educação e direitos humanos, passa por pensar nos direitos que as pessoas, independente de raça, orientação sexual, gênero, situação econômica possuem. É trabalhar para que seres humanos se reconheçam como detentores de direitos e também possam promover esses direitos. A educação em direitos humanos deve ser inclusiva e aberta ao diálogo, diálogo este inclusive com a educação que ao meu ver incentiva o machismo, o racismo e a homofobia. É somente com a manutenção de um campo de diálogo que podemos conseguir avanços e intervenção. Não acredito na imposição, acredito na mudança interna, livre e gradual. Mas também acredito que não podemos recuar em nossos direitos conquistados, ao mesmo tempo que ainda temos muitos direitos a conquistar.
Em determinado local que frequento, conheço uma menina de 15 anos transsexual. A evasão escolar já esta batendo na sua porta, pois na escola ela não pode com tranquilidade usar nem o banheiro masculino, nem o feminino, os professores não chegam à consenso sobre como lhe chamar na hora de verificar a presença dos alunos, as humilhações são constantes, a escola não esta preparada para lidar com a realidade desta jovem. As ideias que acarretam o comportamento desta escola perante a realidade desta menina não nasceram em arvores, não caíram prontas do céu, elas foram forjadas em uma educação machista, sexista, homofóbica. O que podemos fazer para mudar esta situação? Como podemos intervir?
O machista tem o direito de ser machista? Talvez. O machista tem o direito de levar o discurso machista para a sala de aula? Não! As ideias homofóbicas, machistas, racistas são fomentadas dentro das casas e das escolas. Nós defensoras dos direitos humanos devemos nos colocar neste embate para sim, gerar a mudança. O machismo viola os direitos das mulheres e meninas nas mais diversas esferas e isso não pode ser passivamente aceito.
A cada dia que passa, as experiências de militância, de diálogo, de acolhimento me trazem a certeza de que, quando falamos dos direitos humanos, quando falamos da vida das mulheres, nem tudo é preto e branco, temos muitos tons de cinzas nestas questões, cabe a nós também a “sensibilidade” necessária para esta percepção, pois estamos lidando com pessoas, com histórias de vida e cada pessoa tem seu próprio tempo. O agressor também não cai pronto do céu, eu costumo dizer que o machista e agressor começa a ser forjado no chá de bebê, quando a família começa a exaltar seu poder sobre as meninas e sua superioridade por ter um pênis. O cara machista é forjado em cada vez que um menino de 4 anos começa a ouvir “menino não chora”. Discutir essas concepções, encará-las e se lançar nessa mudança é um desafio para o educador (nas mais diversas áreas) que é defensor dos direitos humanos.
Talvez pode-se dizer que uma linha tênue que separa a liberdade de dizer o que quiser e a violação dos direitos humanos, é o reconhecer o outro como legítimo outro. A educação em direitos humanos deve partir dai. Sempre e extremamente atenta para que determinadas concepções não culminem em novas Rafaelas e Josés, pois sim, ideias matam. Posso dizer que a cada 2 minutos, ideias machistas agridem 5 mulheres no Brasil.
Ana Rita Dutra
Educadora, especialista em Educação em Direitos Humanos. Blogueira, Childfree e feminista! Defensora dos direitos sexuais e reprodutivos, da liberdade religiosa, dos direitos das mulheres e das juventudes! Lutadora e sonhadora! Acredito sim num mundo melhor agora!!!
Fonte: Blogueiras Feministas