De casting de modelos a banco de imagens, eles buscam retratar maioria negra da população brasileira sem estereótipos
Por Marina Dayrell e Fernando Scheller, do Estadão
Em um país em que 54% da população se declara negra, a face brasileira representada na mídia e na publicidade ainda é majoritariamente branca. Ao longo da última década, o debate sobre diversidade – racial, de gênero e identidade sexual – ganhou força no marketing. Isso leva a mudanças em grandes agências de publicidade e incentiva a criação de novos negócios voltados à representação negra na mídia e na cultura.
“Hoje se fala muito de diversidade no campo social, que é muito importante, mas também é preciso falar do mercado consumidor. Faz parte da nossa vida consumir produtos e serviços”, destaca o publicitário e fundador da aceleradora Vale do Dendê (que investe em startups da economia criativa criadas na cidade de Salvador), Paulo Rogério Nunes. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva aponta que 72% dos negros entrevistados acreditam que as pessoas que aparecem nas propagandas são muito diferentes deles.
As publicitárias Clariza Rosa e Helena Gusmão fundaram, ao lado de outros dois sócios, a Silva, uma agência de casting, produtora de moda e comunicação voltada para afrodescendentes e moradores de periferia. “Não dá para desenhar uma nova forma de fazer mantendo as mesmas pessoas de sempre. Precisamos incluir gente nova, com outros repertórios e dores”, explica Clariza.
Criado no ano passado no Rio de Janeiro, o negócio agencia 40 modelos e presta consultoria para marcas. “Atuamos desde a concepção da parte estratégica da campanha até a seleção dos modelos. Participamos do processo como um todo para garantir que a comunicação vá ser verdadeira e sem os estigmas geralmente reproduzidos”, conta Clariza.
Com faturamento de R$ 300 mil em 2019 e campanhas para grandes marcas como Fila, Ipanema e Matte Leão, o maior desafio, diz a empreendedora, é tornar o negócio financeiramente sustentável. “Olhar com responsabilidade para vários pontos sem reproduzir padrões exploratórios faz com que o nosso valor fique mais alto do que o de agências que já fecham projetos há muito tempo”, conta.
Para manter o negócio de pé e continuar empregando profissionais negros e da periferia, os sócios já começaram a conversar com empresas para alcançar o principal objetivo de 2020: conseguir investidores para garantir capital de giro. Com estabilidade financeira, o plano é iniciar uma expansão da marca para São Paulo e atender uma demanda já existente na capital.
Sem nenhum aporte financeiro e depois de trabalhar por cinco anos em empresas de publicidade, o especialista em mídias digitais Ricardo Silvestre criou no ano passado a Black Influence, agência que conecta influenciadores e criadores de conteúdo negros ou de periferia com marcas.
Com 30 agenciados – como cantores, fotógrafos e atores – Silvestre acredita que o maior desafio é propor uma mudança na mentalidade do mercado. “As empresas estão começando a falar sobre diversidade, mas não é algo bem trabalhado. É só ver as propagandas que vão para as ruas. É preciso furar essa bolha”.
O empreendedor também chama a atenção para a importância de monetizar os conteúdos produzidos por pessoas negras e de mostrar as vantagens para o mercado. “Eu quero ajudar as marcas a entenderem como é importante a diversidade e o quanto ela vende de verdade. Diversidade também é dinheiro”.
O argumento é respaldado por dados. De acordo com a pesquisa A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo, realizada pelo Instituto Locomotiva, a população negra movimentou R$1,7 trilhão na economia brasileira em 2017. “As pessoas que se sentem representadas em uma propaganda costumam consumir mais o produto. O desafio é mostrar o que é diversidade de fato”, destaca Ricardo.
Banco de imagens
Em plataformas que disponibilizam e vendem imagens, como Shutterstock e Getty Images, ao buscar a palavra “homem”, das 57 fotos que aparecem na primeira página, apenas 12 retratam negros. Para “mulher”, dos 61 primeiros resultados, apenas nove são de mulheres negras. Também há espaço para muitos estereótipos. Das 51 fotos relacionadas ao termo “homem de negócios”, quatro são de negros. Enquanto a maior parte dos brancos retratados nas imagens usam roupas sociais, como terno e gravata, somente um dos negros aparece com trajes semelhantes.
A dificuldade para encontrar fotos de pessoas negras em bancos de imagem fez com que a publicitária Joana Mendes criasse, a partir de um financiamento coletivo, o Young Gifted and Black, banco de fotos feito apenas por profissionais negras, entre elas modelos, fotógrafas, produtora de moda, maquiadora e programadora. “Apesar de estarmos em um momento de maior inclusão, é preciso pensar com mais profundidade. Como sociedade, ainda não enxergamos as mulheres negras como bonitas e não as priorizamos nem como modelos nem na produção”, destaca Joana.
As 130 fotos disponíveis no banco criado por Joana são gratuitas no tamanho pequeno – ideal para posts em redes sociais e panfletos – e as versões em resoluções maiores custam entre R$ 75 e R$ 375. Para manter o arquivo atualizado, a empreendedora está a procura de investimentos e parcerias em 2020.
Algumas fotos e campanhas publicitárias criadas por esses negócios podem ser conferidas neste conteúdo especial feito pelo Estadão PME.
Grandes no mesmo caminho
No fim de 2019, o publicitário José Papa Neto, ex-presidente do Cannes Lions – Festival Internacional de Criatividade, comandou o lançamento da operação brasileira da Trace, iniciativa francesa que começou como uma revista sobre o mundo do hip-hop, mas se tornou uma rede de mídia que hoje inclui 30 canais de televisão e 100 emissoras de rádio. Segundo Olivier Laouchez, cofundador da Trace, a vinda da plataforma para o Brasil era um projeto acalentado desde 2005.
A estreia, no entanto, só se concretizou no último mês de novembro. Os conteúdos da Trace no Brasil são realizados em parceria com a Elo, produtora liderada por mulheres que se dedicam a conteúdos que promovam a inclusão e a representatividade. “O Brasil é a segunda nação negra do mundo, só atrás da Nigéria”, diz Papa Neto, reforçando que a chegada da Trace ao País era imperativa. O projeto já inclui um programa na Rede TV!Trace Trends, um canal on demand Trace Brazuca, no Now, da Claro) e deve lançar a Trace Academia, de cursos profissionais para jovens, ainda em 2020.
Agências se comprometem a contratar mais negros
Na publicidade, as agências reconhecem que suas equipes estão muito longe de refletir o que é o Brasil – e o consumidor brasileiro. “Somos o lugar onde é normal o estagiário chegar de Mini Cooper”, diz uma fonte do setor. Para mudar essa realidade elitista e branca, as 15 maiores agências se comprometeram com o Ministério Público do Trabalho (MPT) a contratar mais negros.
Um dos projetos pioneiros nesse sentido foi o 20/20, originado na J. Walter Thompson. O projeto, lançado em 2016, visava a garantir que o grupo tivesse 20% de funcionários negros até o fim de 2020 (em 2019, chegou a 14%). Após a união com a Wunderman, no segundo semestre, o porcentual caiu a 11%. Segundo a diretora de RH do grupo, Adriana Massari, o 20/20 foi adotado pela nova companhia, que tem 580 funcionários. “Antes, o projeto estava mais focado no programa de estágio. Agora inclui contratações para cargos técnicos e de liderança.”
Assim como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Wunderman Thompson trabalha com a autodefinição racial. Para entender melhor o gargalo de diversidade, a agência realizará um censo interno em fevereiro.
Dentsu Aegis
Assim como ocorre na Wunderman Thompson, a busca pela inclusão racial também começou pelo programa de estágios do grupo Dentsu Aegis. Neste ano, segundo a diretora de RH da companhia, Iza Herklotz, a empresa atingiu um terço de negros entre os selecionados.
Para chegar a esse número, conta a executiva, foram eliminados critérios como a exigência de inglês. Além disso, o processo foi aberto a todas as universidades – em vez de se concentrar em escolas de elite, como anteriormente.
A publicitária Raphaella Martins Antonio, que é negra e ajudou a montar o programa da Wunderman Thompson, diz que a mudança de critérios de contratação é imperativa. “É um absurdo ter inglês como ponto de corte em um país onde só 3% das pessoas tem domínio do idioma. Essa é uma decisão elitista e mostra que a empresa está interessada em falar com esse Brasil privilegiado.”