O banqueiro Jacob Zellweger foi um dos financiadores do tráfico de escravos. O banqueiro Isaac Thellusson apoiou expedições negreiras. Jacques-Louis Pourtalès ficou milionário trocando tecidos por escravos na África | Fotos: Reprodução
Documentos revelam que banqueiros suíços ganharam dinheiro com o tráfico de escravos, diretamente ou financiando expedições para comprá-los. Até a República de Berna aplicou dinheiro em empresa escravista
por Euler de França Belém no Jornal Opção
Um banqueiro disse que tinha como justificar sua fortuna, mas não seu primeiro milhão. Parece ser o caso de alguns milhões da Suíça. Jamil Chade, do “Estadão”, publicou no domingo, 28, a reportagem “Escravidão ajudou a enriquecer a Suíça”, na qual conta que os banqueiros do país traficaram “pelo menos 175 mil escravos africanos”.
A Suíça é vista como um país tranquilo e, nas guerras, neutro. O sociólogo suíço Jean Ziegler e outros estudiosos sustentam que o sistema bancário do país “lava” grande parte do dinheiro “sujo” que circula no mundo. Parte do dinheiro dos nazistas que escaparam foi “lavado” por banqueiros suíços, porque escrúpulos e humanismo nem sempre rimam com o poder do capital. Sabe-se agora que, na sua formatação, a Suíça deve muito a outra atividade, que, embora na época legal, pode ser considerada amoral. A escravidão vitaminou a economia de um país-mestre do capital financeiro.
“Parte dos prédios imponentes e palácios de cidades na Suíça compõe um cenário idílico. Mas a realidade é que foram erguidos com o lucro dessa atividade”, escreve Jamil Chade. As viagens para buscar e comprar escravos eram dispendiosas, daí a necessidade do dinheiro dos banqueiros suíços. Para financiar as viagens, “e pagar pelo seguro da ‘mercadoria’, é que os suíços entraram como parceiros. Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou Rivier financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada”.
Os irmãos Weiss, registra Jamil Chade, financiaram dez expedições entre 1783 e 1790. “As estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram financiadas pelos suíços.” Os historiadores Thomas David, Bouda Etemad e Janick Marina Schaufelbuehl garantem “que os suíços financiaram o tráfico de 175 mil escravos”.
A organização não governamental Cooperaxion está organizando um banco de dados com documentos sobre a atuação da Suíça no tráfico de escravos. Parte das pesquisas é coordenada pela historiadora brasileira Izabel Barros.
A pesquisadora revela que os suíços estavam ligados a cinco atividades principais. “No financiamento das viagens intercontinentais, no comércio e produção de produtos manufaturados, eram também proprietários de terras nas colônias das Américas e do Caribe, havia igualmente militares que prestavam serviços às potências coloniais e de uma forma positiva alguns se engajavam como abolicionistas”, revela Izabel Barros.
O empresário Christophe Bourcard, da Basileia, financiou “mais de 20 expedições, com um total de 7 mil escravos entre 1766 e 1815”. Jean Conrad Hottinger, de Zurique, bancou “expedições para deportar quase mil escravos”.
A documentação reunida pela equipe de historiadores demonstra que o sistema financeiro de Genebra foi usado de maneira decisiva para alavancar o esquema comercial. “O banqueiro Isaac Thellusson investiu em pelo menos três expedições negreiras, o mesmo feito pelo banco Banquet & Maller. Christophe Jean Baur, sócio do banco Tourton & Baur, aplicou parte da sua fortuna em 1748 na Sociedade para o Comércio de Escravos de Angola”, registra Jamil Chade. “O banqueiro de Genebra Antoine Bertrand comprou ações na Companhia da Luisiana, responsável por entregar escravos às colônias francesas na América do Norte.”
O historiador Hans Fässler disse ao repórter que “investidores de Genebra se aliaram ao banco de Zurique Leu & Co para financiar a Dinamarca na compra de ilhas que serviriam de entreposto para o tráfico de escravos em 1760. O Leu, nos anos 90, acabaria comprado pelo Credit Suisse”.
Jean Ziegler é peremptório: por trás da placidez do país, é possível encontrar coisas pouco lisonjeiras e fleumáticas. “Os bancos suíços construíram parte de seu patrimônio à custa do comércio de seres humanos”, afirma o sociólogo. Ele é autor do livro “A Suíça Lava Mais Branco” (Brasiliense, 156 páginas).
Os historiadores descobriram que, além do financiamento do tráfico, os suíços atuaram no comércio de têxteis. Tecidos fabricados na Suíça eram trocados por escravos.
Belos edifícios da Suíça, verdadeiros cartões postais, foram construídos com o produto do tráfico negreiro. A biblioteca e o liceu de Neuchâtel foram edificados com dinheiro deixado por David de Pury, um dos chefões do financiamento do tráfico de escravos. O palacete do museu da cidade foi construído por James Ferdinand de Pury, “investidor na produção de tabaco no Brasil em sociedade com Auguste-Frédéric de Meuron, oriundo de uma família de exportadores de produtos têxteis para a África e financiador do tráfico de escravos”, relata Jamil Chade.
O edifício da reitoria da Universidade de Neuchâtel, anota Jamil Chade, “era um palacete construído por Jacques-Louis Pourtalès, empresário que fez sua fortuna graças à troca de tecidos por escravos na África”. Pourtalès era o suíço mais rico de sua época e um dos mais afortunados da Europa.
Hoje, o governo da Suíça diz que não se envolveu diretamente com o tráfico de escravos e que não se responsabiliza pelas ações de empresários e banqueiros. O Ministério da Educação não quer colocar o assunto na grade curricular, omitindo parte da história do país. A Suíça pode ser responsabilizada? Tudo indica que não. Pois, como disseram autoridades a uma consulta da deputada Pia Hollenstein, não houve envolvimento direto do governo. A Suíça, frisou-se, não teve colônias. O governo admitiu, porém, que empresários e banqueiros do país participaram do tráfico de escravos.
A pesquisa dos historiadores, exposta por Jamil Chade, conclui que não se pode dizer que autoridades públicas não se envolveram inteiramente com o lucrativo tráfico de escravos. “No dia 14 de abril de 1719, a República de Berna comprou 150 mil libras em ações numa das maiores empresas do mundo no tráfico de escravos, a South Sea Company, sediada em Londres. A iniciativa transformou Berna na maior acionista da companhia e o Estado gastou quase 10% de suas reservas nesse investimento. Mas a aposta quase levou o cantão à falência”. Isto ocorreu devido à crise da South Sea Company.
A Suíça, mesmo sem colônias, e a Bélgica, com presença física na África, ganharam dinheiro, muito dinheiro, com negócios poucos limpos, como o tráfico de escravos e exploração desumana diretamente na região (no caso, a Bélgica, sob o rei Leopoldo, cometeu uma das maiores barbáries da história, no Congo).