Em matéria da Folha de São Paulo de 23/10 último, a secretária de Assistência Social do Ministério da Previdência, Wanda Engel explica os novos critérios que serão adotados pelo Projeto Alvorada (programa de combate a pobreza do governo federal):
“O governo federal decidiu por nas mãos das mulheres o dinheiro dos programas de renda mínima e até os títulos de terra destinados a famílias indigentes.”
Essa focalização nas mulheres segundo a secretária, decorre do reconhecimento de que embora a chefia feminina nas famílias brasileiras seja da ordem de 25%, “entre as famílias de indigentes, que não tem renda suficiente para a alimentação básica, o percentual de mulheres chefes de família sobe para 43,9% (…) “A situação piora se a mulher não for branca. Elas ganham pouco mais da metade da mulher branca”. Segundo a secretária, “Focar a ajuda na mulher é uma maneira de garantir que o benefício oferecido pelo governo chegue realmente aos mais necessitados”.
É um critério justo de alocação de benefícios que ataca aquilo que temos chamado nessa coluna de “matriarcado da miséria” que constitui a experiência histórica de carência material das mulheres negras.
Esse é um exemplo de política universalista que, voltada para o combate a miséria, ao integrar na sua formulação e implementação as dimensões de gênero, raça e região, permite identificar e atender aos segmentos mais vulneráveis da sociedade: mulheres, chefes de famílias indigentes, das regiões do Norte e Nordeste do país. O programa incorpora também as dimensões culturais da questão de gênero qual seja o fato de, em geral, o estado de vulnerabilidade social levam os homens dessas famílias indigentes a terem de abandoná-las em busca de emprego em outros lugares ou se abaterem no alcoolismo e na marginalidade social diante da impossibilidade de exercerem o papel que lhes é atribuído socialmente, o de provedores de suas mulheres e de sua prole, ficando as mulheres sós e com os filhos. Daí a opção correta do Programa por colocar os recursos nas mãos das mulheres.
Apesar da justeza dos novos critérios adotados no Projeto Alvorada, permanecem várias preocupações sobre a viabilidade dos recursos efetivamente chegarem ao seu público-alvo. O diretor do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ricardo Paes de Barros para enfatizar que as políticas sociais do país não beneficiam quem precisa delas, usou uma imagem forte para demonstrar a gravidade do problema afirmando que: “se todos os recursos usados nas políticas sociais no Brasil fossem jogados de um helicóptero, os pobres teriam mais chances de recebê-los do que da maneira como são aplicados hoje”
A própria secretária Wanda Engel ilustrou essa mesma dificuldade com esse exemplo: “quem consegue colocar o filho na creche são os que tem amigos políticos e o presidente da associação de moradores (….) quem é realmente necessitado acaba excluído, pois não sabe nem da existência da creche”.
Se o capital social, as relações e o clientelismo são o que definem o acesso às políticas sociais, quais são as chances das mulheres desprovidas desses recursos? Sem uma estratégia clara para atacar essa outra ponta do problema corre-se o risco de que uma política justa em sua concepção e objetivos se perca nas práticas clientelistas típicas do país.
Outra boa nova, o artigo “os mais desiguais” do Ministro Paulo Renato Souza publicado em 24/10/00, no jornal Folha de São Paulo.
Numa manifestação rara vinda do primeiro escalão do governo, o ministro reconhece a imbricação entre raça e exclusão no Brasil, retratando assim, a dramática trajetória dos negros na sociedade brasileira: “Livres, mas sem direitos, os ex-escravos e os seus descendentes formaram a primeira grande massa de brasileiros excluídos. Até meados deste século, o Estado nem sequer reconhecia sua obrigação de garantir escola para todos. Dizia-se que não havia racismo no Brasil. Na verdade, os negros é que não eram “vistos”. Por mais de 60 anos, esse enorme contingente populacional foi “invisível” para as políticas públicas brasileiras.” E afirma ainda o ministro, como também vimos insistindo nessa coluna, “nossa pobreza, portanto, tem cor. E um nome: descaso.”
Apesar dos esforços que, segundo o ministro, o Ministério da Educação vem desenvolvendo para a inclusão dos afro-descendentes no sistema educacional, chama-nos a atenção um aspecto. Se há reconhecidamente uma dívida secular que o país tem para com a população negra, o pagamento de dívidas pressupõe recursos. Tal como disse o ministro, “somos chamados hoje, a pagar o preço dessa mentalidade de indiferença em relação à desigualdade e à violência.” Assim sendo, a vontade política de superação das desigualdades raciais presentes na educação, além de exigir um programa de ação com metas de curto, médio e longo prazos, tem também que se expressar concretamente em diretrizes orçamentárias específicas para esse fim. Mas disso, infelizmente, ainda não se tem notícias.