“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças.” Essa declaração poderia ser de alguém que vive no Brasil em 2021, onde 19 milhões de pessoas passam fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. No entanto, as palavras foram escritas em 1958 e compõem um trecho do livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
Nascida em 14 de março de 1914, em Minas Gerais, Carolina se apaixonou pela leitura e pela escrita ainda na infância. Ainda jovem, mudou-se para São Paulo e passou a registrar sua realidade na favela do Canindé — o que, posteriormente, resultou no célebre Quarto de despejo, que vendeu 100 mil exemplares no seu ano de lançamento, em 1960, e foi traduzido para mais de 10 idiomas. Mas a autora é muito mais do que o seu primeiro trabalho publicado, e é isso que a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros pretende apresentar ao público.
Aberta para visitação a partir do dia 25 de setembro no Instituto Moreira Salles (IMS), na capital paulista, a mostra carrega o título original de dois manuscritos de Carolina que foram reunidos em um livro lançado como Diário de Bitita, em 1986. “Escolhemos esse nome para a exposição porque trata-se de trazer precisamente o que a autora escreveu e, assim, fazer uma crítica ao processo bastante intervencionista ao qual suas obras foram submetidas”, explica, em entrevista a GALILEU, o antropólogo Hélio Menezes, um dos integrantes da equipe de curadoria, que também teve a participação das historiadoras Raquel Barreto e Luciara Ribeiro, além da crítica literária Fernanda Miranda.
“Carolina foi propriamente uma intérprete literária do país, com uma série de reflexões sobre a vida pessoal, a vida de seus coletivos e a vida nacional”, constata Hélio. E os cadernos Um Brasil para os brasileiros são um bom exemplo disso. Neles, a autora resgata memórias de infância e juventude, abordando as primeiras décadas do período pós-abolição da escravidão e as condições socioeconômicas da população negra. “Carolina atribui a frase ‘um Brasil para os brasileiros’ a Ruy Barbosa, e é interessante entender como ela desoficializa ou retoma uma expressão de um cânone importante e o atualiza à sua maneira, dando seu próprio significado de Brasil e brasileiros”, observa o curador.
Muito além de Quarto de despejo
Carolina Maria de Jesus não foi somente escritora. Além de narrativas que assumem a forma de romances, poemas, crônicas, contos, letras de música e peças de teatro, a mineira gravou um disco como cantora e realizou experimentações têxteis na composição de fantasias e vestidos. Para contemplar as múltiplas facetas da artista e proporcionar uma experiência imersiva, informativa e sensibilizadora aos espectadores, a exposição do IMS conta com aproximadamente 300 itens entre manuscritos, fotografias, matérias de imprensa e vídeos.
A seleção, que durou um ano e sete meses, foi essencialmente orientada pelos textos originais da autora. “Quase 6 mil páginas manuscritas estão localizadas hoje no Arquivo Público de Sacramento, local onde nasceu Carolina e que foi de intensa pesquisa nossa”, comenta Hélio. Uma das produções tidas como fundamentais para o encaminhamento do projeto é o poema Quando eu morrer. Na primeira estrofe, Carolina escreve: “Quando eu morrer/Não digam que fui todo/Rebotalho.” Na última, pede: “Digam ao povo brasileiro/O meu sonho era ser escritora/Mas eu não tinha dinheiro/Para pagar uma editora.”
Assim, a exposição apresenta trabalhos já conhecidos pelo público, ressaltando a escrita e a caligrafia originais de Carolina e evidenciando as dificuldades editoriais pelas quais passou. Mas também traz materiais inéditos, como um LP composto por 12 faixas que tratam da vida cotidiana e das relações de classe e de gênero. Também estarão expostas fotos de baixa circulação, chamando atenção para uma estética pouco reproduzida pela mídia. “Não nos parece coincidência que, na maioria das imagens, Carolina apareça a partir de certas convenções: quase sempre com um lenço na cabeça, com o olhar cabisbaixo e perfilada”, analisa Hélio.
Durante a curadoria, a equipe se deparou com fotografias da autora que a retratam de outra maneira. “Ela aparece sorridente, com o cabelo crespo à mostra orgulhosamente, portando trajes elegantes… Esse conflito imagético é um forte indício de como a imprensa foi e ainda é responsável por um contexto que coloca Carolina em um espaço de subalternização”, avalia o antropólogo. E, além de sustentar estereótipos visuais de Carolina, a imprensa criou estereótipos narrativos, como a expressão “escritora favelada”.
Por outro lado, ao longo do processo de construção da mostra, uma hipótese foi elaborada. “Carolina aproveitou-se estrategicamente da imprensa como um canal possível de concretizar seu projeto editorial, uma vez que, via editoras, o constrangimento e as negativas por racismo, classismo e machismo eram bastante frequentes”, diz Hélio.
Isso porque os profissionais identificaram que, pelo menos 20 anos antes do lançamento de Quarto de despejo, a escritora mineira já tentava fazer com que seus textos fossem publicados. Foi da relação ambígua e relevante entre Carolina e a imprensa brasileira que nasceu o núcleo Poetisa Preta, Escritora Favelada: Carolina Na Imprensa (1940-1963), um dos 15 que compõem a exposição.
Outras seções montadas são: Carolina Maria De Jesus: um Brasil para os brasileiros, Bitita livre, Poesia, panelas e fogões, “Quem tem um livro, tem uma estrada”, Carolina, mãe, Quarto de despejo: diário de um país, Ruth virou Carolina, Retratos de Carolina, Carolina & Ativismos Negros, Depois da alvenaria: a vida em Parelheiros, Ditadura, censuras (1964-1977), “Sou filha da bomba atômica”, A outra Carolina tem nome feito de lantejoulas e Carolina presente. “Tentamos estruturar um espaço expositivo que é de reflexão, mas também de emoção. Um espaço de denúncia, mas também de celebração. Carolina foi tudo isso, e é nessa complexidade que a autora merece ser lida, relida e reapresentada ao público”, pontua Hélio.
A atualidade de Carolina Maria de Jesus
A mostra do IMS ainda evidencia a forma como o legado da artista transborda e se reflete em outras esferas da sociedade. “Você pode encontrar fãs de Guimarães Rosa, especialistas em Clarice Lispector e apaixonados por Graciliano Ramos, mas é difícil encontrar uma identificação como em Carolina Maria de Jesus”, conta Hélio. “Uma expressão bastante recorrente, sobretudo entre as mulheres negras, é: eu sou Carolina.”
A mineira é vista não só como uma escritora de suma importância nacional, mas como símbolo de lutas nos âmbitos racial, das mulheres, do urbanismo e do direito à cidade, da favela e do combate à fome. Por isso, a exposição sustenta uma forte relação com a produção artística nacional, dialogando com 62 profissionais: artistas que, como Carolina, fizeram trabalhos domésticos ou que produzem obras com conteúdos similares aos abordados pela mineira em seus trabalhos. “Trata-se de uma exposição de arte e de uma exposição documental e biográfica, fazendo jus, esperamos, ao tamanho de Carolina para esse país”, afirma Hélio.
Para que a mostra se estruturasse com todos esses componentes, a equipe de curadoria teve o apoio de um conselho consultivo. “Justamente pelo tamanho multifacetado de Carolina e sendo ela uma escritora fundamental para se pensar literatura, movimentos sociais, relações de gênero e raciais e relações com a imprensa, entendemos que seria importante ter ambiente de troca, reflexão e críticas”, explica Hélio. O conselho é composto por 12 mulheres de diversas áreas que atuam com destaque em suas frentes, como a escritora Conceição Evaristo, a filósofa Sueli Carneiro e a atriz Zezé Motta. As profissionais não só atuaram no desenvolvimento da iniciativa como se fazem presentes na exposição por meio de depoimentos em vídeo, nos quais versam sobre a relação delas com Carolina e sobre como a mineira se manifesta em diferentes campos do conhecimento.https://0cd4b7ddc3961ebabbd176507b89d870.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
Também são integrantes do conselho consultivo Bel Santos Mayer, educadora social e co-criadora do projeto Biblioteca Caminhos da Leitura; Denise Ferreira da Silva, filósofa e professora da Universidade da Columbia Britânica; Carmen Silva, escritora e liderança do Movimento Sem-Teto do Centro; Elisa Lucinda, escritora, poeta e atriz; Lúcia Xavier, assistente social e fundadora da ONG Criola; Mãe Celina de Xangô, yalorixá e gestora do Centro Cultural Pequena África; Paula Beatriz de Souza Cruz, professora e diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima; Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, doutora em educação e professora emérita da Universidade Federal de São Carlos; e Zezé Menezes, bióloga e cofundadora do Núcleo de Consciência Negra da USP.
E, especialmente diante do cenário social de hoje, Carolina, que fala sobre o povo, para o povo e a partir de perspectivas do povo marginalizado, torna-se imprescindível, sendo uma fonte fértil de aprendizado. “Há muitas Carolinas Marias de Jesus vivendo país afora”, observa Hélio. O curador ressalta que, desde o lançamento em 1960, Quarto de despejo é editado e vendido anualmente. “O livro nunca saiu do mercado justamente porque nele está uma leitura que nos ajuda a entender como o racismo e a pobreza são elementos constitutivos de um projeto conservador de modernidade. O Brasil precisa continuar a ler Carolina Maria de Jesus”, conclui. E, mais do que ler, realmente conhecer.
Serviço
A exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros será inaugurada no dia 25 de setembro de 2021 e vai até 30 de janeiro de 2022. A mostra acontece de terça a domingo (incluindo feriados), das 12h às 18h, na sede do Instituto Moreira Salles em São Paulo, na Avenida Paulista, 2424.
Em decorrência da pandemia de Covid-19, o IMS Paulista está operando com capacidade reduzida e os horários podem sofrer alterações. As visitas precisam ser agendadas por meio do site sympla.com.br/imspaulista. O público deve utilizar máscaras e manter distanciamento social.