Família: Uma reflexão necessária

‘Família’ é só uma palavra, e como toda palavra não possui significado verdadeiro em si mesma, isto por que sequer as palavras existem por si mesmas com seus significados. Não as encontramos em algum local, nos apropriamos e passamos a reproduzi-las; são construções humanas, em sua existência, modo de falar e escrever, e também em seus significados. E como toda construção pode ser reformada, desconstruída e reconstruída, daí haverem palavras que antes existiam e hoje não mais, outras que não existiam e agora sim; palavras que mudaram seu modo de escrever e/ou falar e, muitas vezes, também seus significados – este que principalmente, mas não só, varia não só no decorrer do tempo mas pode variar numa mesma época em diferentes regiões.

por Lucas Jairo C. Bispo via Guest Post para o Portal Geledés

Há quem diga que a realidade que acreditam ser correspondente a palavra família, o seu significado, é natural, faz parte da natureza humana. Trata-se do significado de família enquanto ‘Pai, Mãe e Filhos(as)’ ou também conhecido como ‘Família Nuclear’. Mas como pode ser se já sabemos que este modelo e significado surgiu, que já existiram e ainda existem outros modelos e significados? Ao que parece não há em nossa natureza um modelo e significado determinado.

Tendo isto em vista é possível concluir que seja o que for que chamemos de família, este significado é e será uma construção, e nós temos um significado cultural de família que é a ‘Nuclear’. Perguntemo-nos então: fomos nós, ou a coletividade atual na qual estamos inseridos, quem construímos o significado que compactuamos? Se não fomos nós, qual a natureza deste significado? Em outras palavras, o que é, qual a sua origem, por que existe em nós?

Para responder estas perguntas algumas considerações devem ser feitas acerca de nós e de como nos tornamos quem somos.

Nascemos sem ideias acerca de nós mesmos, dos outros, e da realidade que nos cerca. Sem saber como nos comportar e conviver no meio em que estamos inseridos.

Qualquer um que observar um recém-nascido, se desconsiderar impulsos instintivos que já fazem parte deles quando nascem, perceberá que, em relação as ideias, estes chegam a um mundo novo como folhas em branco nas quais se pode escrever. E todos nós já estivemos neste estado.
Ocorre que nascemos também sem a capacidade já desenvolvida de pensarmos de modo crítico e reflexivo sobre estas questões para que pudéssemos preencher, por nós mesmos, estas folhas em branco, isto é a nós.

Agora pensem comigo: ora, se não somos nós quem nos preenchemos inicialmente, que pensamos e decidimos quem nós seremos, como pensaremos, quais ideias e valores teremos e como nos comportaremos, quem e/ou o que nos preenche?

Outros animais têm seu comportamento completamente ou quase completamente guiado por suas bagagens genéticas – a natureza os preenche totalmente ou em grande parte -, nós não. Não em relação as ideias. Nós somos seres que são construídos e se constroem. Inicialmente é no contato com o meio social e através da absorção do que a geração anterior nos ensina direta e indiretamente que as folhas em branco passam a ser preenchidas. A isto podemos chamar de processo de socialização, de construção cultural, e cada sociedade pode ter suas culturas, ou seja, grosso modo, seus modos de viver, conviver, de verem a si mesmos, aos outros e a realidade.

Aqui temos um primeiro problema: é nesta época inicial em que não temos forte senso crítico e reflexivo que o condicionamento social é mais forte justamente pela falta desse senso crítico e reflexivo desenvolvido. Qual o problema? Se somos seres ao menos inicialmente construídos, frutos de uma cultura, neste processo de construção muito do que foi embutido, impresso, em nós não foi analisado de forma crítica e reflexiva por nós mesmos para que tivéssemos decidido se queríamos ou não absorver o que estava nos sendo oferecido.

O fato de falarmos português é um exemplo. Não escolhemos aprender esta língua, fomos condicionados a isso. Quando falávamos as primeiras palavras não tínhamos consciência do que estávamos fazendo, não poderíamos ali optar por não aprendermos esta língua ou aprendermos uma outra. O que mais temos em nós sem que tenhamos escolhido e refletido?

Assim como somos condicionados a aprendermos a língua portuguesa, na medida em que crescemos somos condicionados, de vários modos diretos e indiretos (inclusive no simples convívio e contato com o modo de funcionamento do meio social), a absorvermos vários discursos, que são, na minha interpretação, concepções de verdade acerca do homem, do seu modo de pensar, agir e viver, e da realidade a sua volta. Uma definição semelhante a que dei a cultura, isto por que a entendo até então como um conjunto de discursos.

Mas tudo isto – esta coisa de absorvermos e termos em nós coisas sem que tenhamos refletido e escolhido – não ocorre somente durante esses processos, mas até agora. Somos bombardeados por informações das grandes mídias, das redes sociais, e estamos convivendo numa sociedade que reproduz discursos a todo momento. Sem uma postura crítica e reflexiva estamos vulneráveis.

(Pergunto a ti: assim como eu e todas as pessoas de nosso tempo que passaram pela educação básica, você entende que a terra gira em torno de si e em torno do sol? Imagino que sim. Mas sabe responder sobre ‘como sabe que isso é verdade’ para além apelar para a autoridade dos professores e de uma tal ciência que dizem ser assim sem que você conheça como sabem? A maioria de nós apenas herdou um discurso que molda nossa cosmovisão, e esta herança sem fundamentação gera alienação e dogmatismo (inimigos de nossa liberdade). É curioso notar que nossa percepção capta de imediato o contrário: nos sentimos parados e não girando, ao jogarmos algo para cima este algo cai no mesmo lugar e não atrás como seria de se esperar já que no intervalo entre ser jogado para cima e cair a terra deveria se mover, de manhã vemos o sol num lugar, a tarde em outro e a noite ele some, não parece parado. Mas ainda assim acreditamos no contrário, e muitas vezes acreditamos sem ter evidência para isto. Claro que não estou discordando dessa ideia de que a terra gira em torno de si e do sol, só a usei para explicitar o que pode ser uma crença em nossas mentes.)

E a diversidade do que poderemos ter que absorver ou não inicialmente é grande já que os discursos podem variar de cultura para cultura e a depender dos meios em que estamos inseridos dentro de uma cultura.

Se refletirmos, perceberemos que nascer no Brasil e crescer nesta sociedade faz com que nossa experiência de vida seja diferente da de crescer e ser educado na França, no Japão ou na Índia, por exemplo. Isso gera consequências fundamentais e diversas em nossas vidas. Os discursos, ideias, regras, princípios, valores e etc., que são disseminados numa região do planeta podem não ser os mesmos em outra, e isto vária de época para época também. Não seriamos os mesmos se tivéssemos nascido no Brasil há 300 anos. Aquilo que somos é, em boa parte, o que fizeram de nós.

Feitas estas considerações mínimas que não pretendem esgotar as questões acerca de nós e de como nos tornamos quem somos, é possível propor que este significado de ‘Família Nuclear’ é um discurso, uma concepção de verdade, que absorvemos a partir da nossa vivência numa sociedade que há muito tempo vem o reproduzindo e reforçando, que tomamos como natural por experimentarmos este modelo como normal.

No entanto, apesar da maioria de nós termos em nós este significado de ‘Família Nuclear’, há outras pessoas em nosso país que se relacionam em outros modelos que entendem-se e sentem-se como uma família e requerem o reconhecimento legal e social. Poderia citar filhos (a) criados só pelo pai, mãe ou outros familiares, casais sem filhos, entre outros exemplos, mas tratemos dos casais homoafetivos, principalmente aqueles já com filhos (adotivos, por exemplo), isto por que os outros modelos citados parecem ser mais tolerados e visto como famílias incompletas, enquanto este último tem seu status de família negado.

Nesse contexto cabe a nós decidir se enquanto sociedade reconheceremos ou não este status de família a estas pessoas. Ou seja, se manteremos este significado de familiar nuclear, que surgiu, e a maioria de nós não sabe como nem por que, que não escolhemos mas somente herdamos através do condicionamento social, que exclui e faz sofrer outras pessoas, que desvaloriza o que mais deveria importar numa família que é o respeito e o amor, ou ampliaremos este significado, acolhendo outros modelos que já existem, sendo tolerantes e promovendo o bem-estar destas pessoas ao invés de os impormos nossa visão pessoal. Somos, apesar de semelhantes, naturalmente diferentes, não podemos conviver com a diferença?

Sei que há os que alegam que a ‘Família Nuclear’ é respaldada pelo divino e por suas religiões, mas se estes não entendem que as regras e concepções de uma religião não devem ser impostas sobre as pessoas, principalmente as não adeptas da religião em questão, são fundamentalistas que se dispõe a regular o convívio social desconsiderando o bem-estar das diversidades, e como afirmou o brilhante Stephen Hawking: ‘A mente do fundamentalista é como a pupila do olho: quanto mais luz você joga, mais ela se fecha’.

Por fim ‘(…) consideremos quão ingênuo é dizer: ”o homem deveria ser de tal ou de tal modo!’. A realidade nos mostra uma encantadora riqueza de tipos, uma abundante profusão de jogos e mudanças de forma – e um miserável serviçal de um moralista comenta:”Não! O homem deveria ser diferente”. Esse beato pedante até sabe como o homem deveria ser: ele pinta seu retrato na parede e diz: eis o homem!’ – Nietzsche.

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