‘Foi uma vitória que teve um custo muito alto’, diz aluno que denunciou racismo

Aluno do professor Malaguti, demitido pela Ufes, João Victor Santos fala de dor e comemoração do fato

Por Vitor Taveira Do Seculo Diário

“A gente comemorou bastante mas também chorou muito essa vitória, se é que se pode chamar de vitória, pois teve um custo muito alto”, declarou João Victor Santos, um dos estudantes de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que denunciou as declarações feitas em sala de aula pelo professor Manoel Luiz Malaguti, em 2014. Demitido, o professor conseguiu voltar a dar aulas na universidade um ano depois, mediante liminar na Justiça, mas perdeu novamente a causa na última semana, sem possibilidade de recurso.

Publicada na última sexta-feira no Diário Oficial, a informação tinha passado batida e só veio à tona na mídia depois que João Victor a divulgou na noite de segunda-feira (18), depois de ser avisada por uma servidora da Ufes.

A primeira coisa que fez foi comunicar sua turma, que foi responsável por levar adiante a denúncia. “Muitos dos estudantes já se formaram. Dos estudantes negros, todos fazem acompanhamento psicológico desde então, três estudantes negras da turma abandonaram o curso e saíram da universidade. Alguns estudantes brancos seguiram sua vida normal. É uma questão que afetou diretamente os corpos negros”, lembra.

Daí a sensação de comemoração se misturar com dor. “Teve custo de adoecimento, de lidar com o corporativismo e o racismo institucional da universidade de um jeito talvez inédito para o movimento negro. Por desacreditar que seria possível uma exoneração. Foi algo bem desgastante”, confessa.

Foto do alino João Victor Santos
Foto: Reprodução/ Seculo Diário

Ao invés de um fato a ser comemorado, João Victor prefere ver o caso como um marco, encarado como positivo ou negativo a depender de quem olha. “Para mim, que estou diretamente ligado, que fui usado como exemplo e fui perseguido pelo professor durante todo o processo, é um marco extremamente negativo, é algo que lembrar causa muita dor”, lamenta. “Mas eu sei que para as políticas da universidade, para as lutas da universidade, é a primeira vez que um professor é exonerado por um crime de racismo, em que os estudantes denunciam o professor. Isso tem seu valor, pois a mesma universidade que teve produção científica menosprezando os corpos negros, está punindo seus profissionais por terem esse pensamento. Isso abre brecha para a gente pensar para onde está caminhando essa universidade ou para onde ela deveria caminhar”, aponta o jovem.

João Victor Santos lembra muito bem do dia 3 de novembro de 2014, quando ocorreu o episódio, numa segunda-feira. Os alunos tentaram acionar a imprensa, que a princípio não deu muita repercussão. Mas na quarta-feira o próprio professor Manoel Luiz Malaguti deu uma entrevista na televisão reafirmando o que havia dito em sala de aula.

“A única parte que ele modificou foi a frase que em que disse que detestaria ser atendido por um médico ou advogado negro, que na televisão trocou o ‘detestaria’ por ‘não gostaria’”. Essa entrevista acabou sendo crucial para que a denúncia ganhasse força. “O caso só foi para frente porque o próprio professor se entregou. A gente não tinha nenhuma prova, não tinha gravado a aula, não tinha imagens, a gente tinha nosso depoimento. E era nossa voz de estudantes calouros contra a dele como professor e do advogado dele, então a gente não tinha muito poder”, explica.

Em pouco tempo, os estudantes da turma convocaram outros estudantes e movimentos da universidade, assim como professores ligados à pauta dos direitos humanos e fizeram um grande ato na Ufes na quarta-feira seguinte ao episódio. “Fizemos uma rede e conseguimos disputar a narrativa na mídia e na universidade, que entenderam que se tratava de racismo. Ganhamos a opinião pública e o caso ficou insustentável para ele. Essa rede fez uma grande diferença, mas só foi possível porque o professor fez o vídeo”.

Mesmo assim, sempre houve muita preocupação de que o processo não desse em nada. O processo judicial instalado pela turma foi arquivado e esta optou pela denúncia pela via administrativa, embora um desembargador tenha levado adiante o processo judicial contra o professor.

A demissão de Malaguti sairia praticamente um ano depois, em setembro de 2015, após um longo tempo de processos tramitando administrativamente. Mas no início do semestre seguinte, uma recurso do professor no Tribunal Regional Federal (TRF) obrigou a universidade a readmiti-lo até dia 20 de janeiro de 2016. Os estudantes chegaram a fazer um ato de protesto adentrando a sala durante uma aula de Malaguti para denunciar a permanência do professor.

Mas a sensação era de causa perdida. “Naquele momento pareceu previsível que a gente tinha perdido, que a situação foi abafada, tudo ficou calmo e ele voltou à condição de professor normalmente, como se nada tivesse acontecido. Então a gente ficou bastante frustrado”, afirma João Victor.

E assim permaneceu a frustração, até que fosse despertada essa mistura de dor e alegria dos estudantes pela demissão do professor, que implica relembrar todo o processo e a forma como afetou a eles.

A demissão de Malaguti tem então um caráter de Vitória de Pirro para os jovens e valentes estudantes que foram adiante com a denúncia e conquistaram uma vitória aparentemente muito improvável. Rei de Epiro e da Macedônia nos tempos antes de Cristo, Pirro, ao ser cumprimentado ao voltar de uma batalha vencida à custa de muitas perdas, teria declarado que uma outra vitória como aquela o arruinaria completamente.

“Denúncia de racismo é bastante desgastante, talvez por isso temos tão poucas denúncias formais e tão poucos processos por crime de racismo” , analisa João Victor Santos. Mas valeu a pena? “Vale a pena pelo marco simbólico, pela jurisprudência, mas que seja trabalho para não termos mais ações como essa, nem ter professores como esse”.

Se faria outra vez? João disse que ele e seus colegas seguiram fazendo em outras situações como quando denunciaram a não aplicação da Lei 10.639, que prevê ensino de história e cultura afrobrasileira, a omissão da reitoria ao não debater as fraudes nas cotas raciais e os processos contra estudantes negros por protestarem na universidade.

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