A nomeação da professora doutora Ana Flávia Magalhães Pinto para a direção do Arquivo Nacional é um passo importante para a preservação e gestão de documentos, de acordo com a legislação arquivística brasileira, e a democratização do acesso ao conhecimento no país. A seriedade e o compromisso de Ana Flávia, bem como sua experiência de trabalho em equipes multidisciplinares serão fundamentais para a salvaguarda de documentos de variados formatos, concomitantemente à ampliação e diversificação das iniciativas de preservação e difusão da memória no Brasil, síntese necessária a um país que sofre com o apagamento da memória e a destruição massiva de documentos.
Uma dimensão pouco debatida dos arquivos é sua relevância no enfrentamento ao espitemicídio, aqui compreendido como anulação e desqualificação do conhecimento de povos subjugados. Que documentos são suficientemente relevantes para compor o Arquivo Nacional?
Ana Flávia tem desenvolvido trabalhos de grande relevância no campo da história pública, da promoção do direito das populações negras à memória e à história e acumula experiências exitosas na coordenação do grupo de trabalho emancipações e pós-abolição da Associação Nacional de História, na Rede de Historiadoras e Historiadores Negros e na Universidade de Brasília. Não há dúvidas de que ela vai trabalhar, em diálogo permanente com diferentes profissionais e atores, para dinamizar as possibilidades de gestão documental, pesquisa e ensino que o acervo do Arquivo Nacional permite. Além de posicionar a instituição nos debates de raça, gênero, colonialidade e enfrentamento ao epistemicídio.
Para Heloisa Bellotto, uma das mais importantes arquivistas e historiadoras do Brasil, a existência de documentos se justifica “[…] pela necessidade que sempre tiveram as comunidades humanas, desde a mais remota antiguidade, de registrar, em suportes inteligíveis, as suas normas, ações, transações, deveres etc. de modo a preservar o testemunho”. Em sua trajetória profissional e acadêmcia Ana Flávia tem reafirmado que a produção, o uso e a guarda dos documentos são fundamentais na construção do país democrático e de equânime que sonhamos.
O Arquivo Nacional foi paulatinamente precarizado no último governo e pautou manchetes internacionais depois do incêndio de abril de 2022. O trabalho de servidoras e servidores públicos foi o pilar de sustentação para que a Instituição não desmoronasse no desgoverno de Jair Bolsonaro.
As mudanças realizadas pelo atual governo federal, ao transpor o Arquivo Nacional para o ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, com status de secretaria, apresenta perspectivas importantes para priorizar a gestão documental, além de atualizar a organização dos arquivos, considerando a relevância do digital É premissa nestes tempos compreender a produção e o uso dos documentos, além dos processos de trabalho, a partir de critérios técnicos que também ampliem a utilização dos acervos para pesquisas, uso e recuperação de informações. O que se torna possível a partir do trabalho de profissionais de arquivologia em diálogo, articulação e colaboração constante com historiadoras e historiadores, profissionais de diferentes áreas e comunidades cuidadoras de memória.
A nomeação de Ana Flávia Magalhães Pinto, ativista de movimento negro,historiadora e professora da UnB, é estratégica para as necessárias melhorias da Instituição de 185 anos. Além de ampla capacidade técnica no campo da História e experiência interdisciplinar, Ana Flávia tem conhecimentos relevantes na gestão e difusão de acervos. Tivemos a oportunidade de trabalhar com ela na organização do acervo da Casa Sueli Carneiro. Neste trabalho, em diálogo com Ana Flávia, a equipe técnica pensou e repensou a disposição, a catalogação e a divulgação arquivística dos documentos de uma ativista dos movimentos negro e feminista, com a oportunidade de refletir sobre a utilização de principios da arquivologia pelos movimentos sociais. Os desafios da gestão de Ana Flávia são enormes, vão desde a incorporação de novos técnicos ao corpo de funcionários do Arquivo Nacional e a manutenção para a preservação e a gestão dos documentos, até a retomada de projetos como “Memórias Reveladas” e a implementação de novos projetos que contemplem a diversidade da sociedade brasileira. A capacidade de escuta de Ana Flávia, somadas à sua experiência profissional, acadêmica e ativista será fundamental para que a gestão documental do Arquivo Nacional seja valorizada e ampliada, sem abrir mão da responsabilidade social da instituição nesta fase de investimento público na memória como essencial à reconstrução do país.
Doutora em Educação pela USP e coordenadora de difusão e gestão da memória institucional de Geledés Instituto da mulher Negra;.
Jean Camoleze
Doutor em ciência da informação pela UNESP/Marília, membro da Rede de Lugares de Memória da América Latina e Caribe e coordenador de acervos da Casa do Povo.