Histórias de uma santa negra no Brasil que é digna de filme

Livro de Luiz Mott resgata vida da africana Rosa Maria Egipcíaca, presa pelo Santo Ofício

Santa, embusteira ou demente? São três perguntas para uma personagem tão grande e complexa de nossa história. E, certamente, ainda não sabemos como respondê-las. Estamos falando de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, ou simplesmente Rosa Egipcíaca (1719-1771), uma mulher negra, africana, escravizada, que se tornou mística e deu muito trabalho para a igreja e as autoridades eclesiásticas em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e, por fim, em Lisboa, onde foi presa pelo Santo Ofício.

É sobre essa biografia cheia de aventuras religiosas e requintes de riqueza e artimanha que se debruça o antropólogo Luiz Mott no excelente livro “Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil”, que é publicado agora em uma segunda edição, revista e ampliada.

O livro de Mott é o caminho mais seguro para a compreensão da história dessa mulher nascida na Costa da Ajudá, então Reino do Benin, que aos seis anos é capturada e traficada para o Brasil, vivendo até os 13 anos no Rio de Janeiro, na altura da igreja da Candelária. Embora ainda criança, seu senhor, José de Sousa de Azevedo, de origem portuguesa, segundo a própria revela, “a deflorou e tratou com ela torpemente“, ou seja, pela violência e pelo sexo.

Vendida para Minas Gerais, foi parar na região do Inconfeccionado, perto de Mariana, comprada pela família de Ana Garcês de Morais, a mãe de Santa Rita Durão, frei e poeta colonial, autor do poema épico “O Caramuru”, tido como o primeiro a tratar dos indígenas como heróis nacionais.

É nas Minas, como se dizia, “até suas primeiras manifestações diabólicas”, a partir de 1733, que Rosa vai viver exclusivamente da prostituição –período, portanto, de 15 anos—, até sua conversão religiosa, em 1748.

O livro de Luiz Mott, bem documentado e com boas descrições, esmiúça de forma excepcional o ambiente colonial vivido pela “santa africana”, no pior período da escravidão brasileira, sobretudo nas regiões de mineração, onde “a imoralidade e a prostituição vicejavam sôfregas e indomáveis”, lado a lado com o comércio negreiro e a exploração de riquezas naturais, como ouro e pedras preciosas.

Auto de Falecimento de Rosa Maria Egipcíaca – Reprodução

Rosa vai viver assim até conhecer o padre Francisco Gonçalves Lopes, também conhecido como Xota-Diabos, apelido que ganhou pela “dedicação ao ministério de expulsar demônios do corpo dos endiabrados”. A relação dos dois, como a biografia nos revela, é a de violação e desvio.

Foi assim que se tornou o anjo da guarda de Rosa, e esta, após encerrar sua vida de meretriz, vendeu tudo o que tinha e doou para os pobres, passando a viver como beata, a frequentar cultos e missas nas igrejas, onde intervinha e causava confusão, possuída pelo demônio. Por essas e outras, foi presa, açoitada e perseguida.

Com seu padre Xota-Diabos, foge para o Rio de Janeiro, onde intensifica seus desatinos religiosos, se nomeando Deus e criando um recolhimento, destinado a acolher mulheres como ela, oriundas da escravidão e da prostituição. Rosa Maria então acrescenta ao nome o Egipcíaca da Vera Cruz, se autoalfabetiza e escreve o livro “Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas”, destruído pela Inquisição, mas considerado “o mais antigo livro escrito por uma mulher negra na história do Brasil”.

No ano de 1763, foi presa e enviada para prestar contas dos seus desatinos e embustices religiosas para o Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa. Seu processo é peça das mais completas e ricas de informações sobre os feitos de uma mulher negra afro-brasileira até hoje.

O trabalho de Mott, no entanto, é obra primorosa do ponto de vista da reconstituição histórica de uma mulher escravizada no Brasil. Trancafiada a ferros nos cárceres de Lisboa, a “santa africana” morreu sem ter seu processo concluído, ao contrário do seu antigo padre, o Xota-Diabos, humilhado publicamente, condenado e deportado para o interior do país.

Como revela a nova edição do livro, Mott traz documento inédito sobre a biografada: o seu “auto de falecimento”, atestando que, mesmo sem ter seu processo concluído, Rosa Egipcíaca continuou a viver na prisão da Inquisição, onde faleceu “no Cárcere da Cozinha”, a 12 de outubro de 1771 —ou seja, depois de escravizada e liberta, violentada e presa, continuou seus últimos dias a ser explorada, como mulher e negra, pela Justiça dos homens.

A vida de Rosa foi enredo no último Carnaval da Escola de Samba Unidos do Viradouro, quando foi vice-campeã, 30 anos após a publicação da história por Luiz Mott e do romance “Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a Incrível Trajetória de uma Princesa Negra entre a Prostituição e a Santidade”, este de 1997, escrito por Heloísa Maranhão.

Agora temos nova oportunidade de rever uma história afro-brasileira digna de um belo filme.

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