Inhotim sediará o Museu de Arte Negra, projeto nômade de Abdias do Nascimento

Coleção fundada pelo criador do Teatro Experimental do Negro chega ao museu mineiro em mostra com obras dele e de Tunga

O Rio de Janeiro ainda era capital do Brasil quando sediou, em 1955, o 36º Congresso Eucarístico Internacional. Foi neste momento de reunião da Igreja Católica no país que o Museu de Arte Negra, projeto criado dentro do Teatro Experimental do Negro comandado por Abdias do Nascimento, fez sua primeira grande ação —um concurso de Cristos negros. Djanira saiu vencedora com uma pintura em que Jesus era representado como um negro escravizado, açoitado no Pelourinho em Salvador.

O concurso era, em certa medida, uma provocação. Ele “confrontava as narrativas que embranqueceram a imagem de Cristo ao longo da história”, afirma Julio Menezes Silva, pesquisador do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, o Ipeafro, fundado por Abdias. Isso enquanto a cúpula branca da Igreja circulava pelas ruas da cidade.

‘Largo do Pelourinho’, tela de Djanira de 1955 em que Jesus aparece como um homem negro escravizado açoitado em praça pública – Jaime Acioli/Divulgação

Esse era também o começo de uma formação mais sólida do acervo do Museu de Arte Negra, o MAN, criado em 1950 para debater a estética da negritude, ideia que tinha chegado ao grupo naquele mesmo ano ao ser apresentada por Ironides Rodrigues no Primeiro Congresso do Negro Brasileiro.

Mais de 70 anos após sua inauguração, e dez anos depois da morte do intelectual que o fundou, o MAN enfim ganhará uma sede. O Instituto Inhotim exibirá o seu acervo por dois anos, finalmente levando ao público obras que costuram a influência fundamental da tradição e da produção africana nas artes visuais.

Além da produção cênica, o Teatro Experimental do Negro atuava também politicamente, por exemplo ao promover oficinas de alfabetização ou levar à Assembleia Nacional Constituinte na época propostas para combater a discriminação racial.

“Nunca foi uma proposta apenas estética, inclusive porque na tradição africana não existe a questão da arte pela arte. Ela está sempre intimamente ligada à vida e pulsa como parte dela”, diz Elisa Larkin Nascimento, co-fundadora do Ipeafro e viúva de Abdias.

“Quando você tem uma situação de exclusão, de discriminação , como a que vivem as pessoas negras dentro de uma sociedade racista, essa questão é fundamental, ela molda e vibra dentro de uma produção estética.”​

A primeira das quatro exposições que o Inhotim abriga nos próximos dois anos relaciona as obras do criador do MAN às de Tunga.

A escolha evidencia dois aspectos da coleção. O primeiro, de que ela está bastante ligada a pessoas que conviviam com Abdias —ele e Tunga eram próximos desde que o último era jovem, por exemplo. “Esse acervo explicita uma rede de intelectuais e de afetos, ele foi criado por relacionamentos pessoais”, afirma Douglas de Freitas, curador do Inhotim.

A segunda é que não se trata de uma coleção composta somente por obras de artistas negros, mas sim por aquelas em que “o negro e sua cultura estejam representados e exerçam influência ou desempenhem um papel inspirador”, como o próprio Abdias definiu.

Foi assim com Tunga. Numa entrevista que deu ao Correio da Manhã ainda com 15 anos de idade —e na qual seu nome foi grafado como “Dunga”—, ele afirma que a arte negra foi a primeira a “romper os grilhões das chatas imagens renascentistas”. A reportagem é ilustrada por um quadro que Tunga fez naquele ano para o MAN e que estará na mostra no Inhotim.

Alfredo Volpi, Iberê Camargo, Anna Bella Geiger e Ivan Serpa são outros artistas que figuram no acervo. “A coleção acaba sendo uma espécie de panorama das artes plásticas brasileiras daquele momento”, observa Larkin Nascimento.

Ela afirma que a influência da estética de origem africana só começou a ser discutida de forma mais ampla agora. Na época em que o MAN foi criado, não se falava, como hoje, que a arte moderna ocidental surgiu no Velho Mundo a partir do olhar dos artistas europeus para essa estética, do “saque colonial no continente”. “Eram peças que eles não chamavam de artísticas, mas de arte etnográfica. Mas aquela estética chega”, diz ela. Abdias afirmava ainda em 1968 que o trabalho de Picasso era testemunha desse movimento.

Deri Andrade, também organizador da mostra do Inhotim, lembra que pensar um acervo que foque a produção negra também era algo pioneiro nos anos 1950. Outros museus importantes voltados para essa temática, como o Museu Afro Brasil em São Paulo, surgem só entre os anos 1980 e 2000.

Nos próximos “atos”, como o Inhotim e o Ipeafro nomearam as exposições do projeto, serão apresentados outros artistas do acervo.

Essa é a primeira vez que o MAN tem uma sede de longa duração, e o Ipeafro disponibilizou as obras numa plataforma online. Elisa Larkin Nascimento ri ao lembrar que, quando perguntavam a Abdias onde era a sede do Museu de Arte Negra, ele costumava apontar para a pasta de couro que sempre carregava.

“A obra do Abdias do Nascimento e a coleção do Museu de Arte Negra têm vida, de fato, em espaços de outros museus. Ao longo desses anos todos ela se materializa um pouco na síntese da nossa vida e caminhada, dos negros africanos”, diz Menezes Silva. “A gente vai indo pelas brechas.”

MUSEU DE ARTE NEGRA – PRIMEIRO ATO: ABDIAS NASCIMENTO E TUNGA

  • Quando De 4/12 a 10/4/2022. Qui. a sex.:9h30 às 16h30. Sáb., dom. e feriados: 9h30 às 17h30 
  • Onde Galeria Mata, no Instituto Inhotim – r. B, 20, Fazenda Inhotim, Brumadinho, Minas Gerais
  • Preço Ingresso a partir de R$ 22, no Sympla. Entrada gratuita na última sexta cada mês, exceto feriados, mediante retirada prévia no Sympla 

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