Raiz negra da dança contemporânea, ele evoca corpo em movimento, contorcionismo e beleza
É quase impossível falar em dança contemporânea na Europa sem mencionar o nome de Ismael Ivo. Coreógrafo e bailarino afro-brasileiro, esse paulistano de 49 anos, se transformou em cidadão do mundo quando, em 1983, o coreógrafo americano Alvin Ailey, após tê-lo visto em uma performance solo, o convidou para integrar sua companhia de dança em Nova York. Dos Estados Unidos para o Velho Continente foi só uma questão de tempo.
Após anos de experiência, o menino que cresceu dançando pelas ruas da Vila Prudente, hoje se divide entre os principais palcos de Berlim (onde mora), Nova York, São Paulo e Veneza.
E foi justamente ali, entre os canais mais românticos do mundo, que este coreógrafo de vanguarda – que funde à sua raiz negra a dança moderna, ao butô japonês e ao teatro-dança alemão – assumiu, ano passado, a curadoria do Festival Internacional de Dança Contemporânea da Bienal de Veneza, um dos mais importantes eventos de dança do mundo. Para intensificar sua pesquisa sobre o corpo humano, Ismael Ivo criou para o festival, em 2005, Body Attack – espetáculo que estudava o corpo como documento de seu tempo.
Na edição deste ano, em junho passado, foi a vez de UnderSkin – coreografia que procurava trazer à tona o que se esconde debaixo da pele para compreender o papel da dança em relação ao corpo e a sociedade. A “era Ivo” de onde provém a dança inovativa e multiétnica, como descrevem alguns jornalistas e críticos europeus, deve terminar no próximo ano. Encerrando a trilogia o coreógrafo levará à Veneza o mais absoluto e explosivo de todos os temas: o erotismo com a encenação denominada O Corpo e Eros.
Raça Brasil – Atualmente, que espetáculos seus estão em cartaz na Europa?
Ismael Ivo – São dois espetáculos paralelos, o primeiro se chama Dubble. Estreou em novembro em Bielefeld, na Alemanha. Esse projeto envolve atores e bailarinos e é inspirado em dois autores: Antonin Artoud e Heiner Müller. A visão que ambos haviam do teatro foi o ponto de partida para desenvolver esse trabalho. De Artoud nos baseamos no teatro da crueldade, aonde o foco principal era o corpo, qual o papel do corpo físico dentro do teatro contemporâneo. Já Müller representa o teatro de fragmento sintético. Procuramos sintetizar frases, palavras e idéias e dar lugar ao corpo como protagonista, a expressão corporal do ator enquanto palavra. Algo como comer as palavras e digeri-las em movimento. O segundo espetáculo se chama Apólo e Jacinto – primeira ópera escrita por Mozart, aos 11 anos. Eu coreografo, danço e dirijo. É a primeira vez que dirijo uma ópera, oportunidade que me diversifica linguagem e experiência. Estréia este mês no Museu Pergamon, de Berlim, fechando o ciclo de comemoração do centenário de Mozart.
Você vem de uma família com educação católica, como foi que você descobriu que seria bailarino?
Família católica sim, mas até onde se define a religião no Brasil. O nosso catolicismo é diverso do romano. No domingo a gente vai à missa e no resto da semana, ao terreiro. Eu sempre digo que o terreiro foi o primeiro contato que tive com arte, porque me abriu as asas da imaginação. Eu relaciono com o que faço enquanto dança. Recuperar esse sentido da magia, da fanstasia, da irrealidade que se torna real por meio da arte. O que uma família negra, de classe média baixa, deseja para o filho? Ser médico, engenheiro… Uma perspectiva de ascensão na escala social. Mas cheguei a um ponto que comecei a questionar raças, preconceitos, oportunidades e isso me deu outra perspectiva. Descobri que queria verbalizar. Não somente conquistar um lugar social. Sentia a necessidade de colocar isso como expressão. E o teatro se apresentou como um grande veículo. Foi dali que descobri o corpo e dei início a minha pesquisa corporal.
Qual foi a reação ao convite de Alvin Ailey para que você integrasse sua companhia de dança e o que mais lhe marcou naquele tempo em que viveu em Nova York?
A Big Apple em si é impressionante. Sentia sempre martelar uma coisa como: Decifra-me ou devoro-te. Mas o que mais marcou foi a disciplina. O americano não te dá tempo para pensar se uma coisa vai ou não dar certo. Isso me deu possibilidades de investir em mim mesmo. A bendita mão de Deus levou o Alvin ao Brasil. Ele me levou para Nova York e isso fez com que meus projetos amadurecessem. Foi um grande mestre e uma grande escola.
A sua ida a Berlim tem um motivo especial?
Fiz um solo em Nova York e me convidaram para apresentá-lo em Berlim e Viena. Quando fui para a Alemanha, Berlim estava fervendo com a grande revolução da dança teatro e toda aquela efervescência me fascinou muito. Quando voltei para Nova York sabia que o tipo de pesquisa que eu estava desenvolvendo já no Brasil, isto é, a busca do meu próprio tipo de linguagem – e que foi o que chamou atenção do Alvin – não poderia ser concluso ali. Fui para a Alemanha porque me identificava totalmente com o que estava acontecendo naquele momento.
Matéria original: Revista Raça