Filho de escravos, nascido nove anos depois da lei do Ventre Livre (que não considerava cativos os filhos de escravos nascidos a partir dali) numa fazenda em Encruzilhada do Sul, interior gaúcho, João Cândido entrou para a Marinha aos 14 anos, onde teve carreira exemplar.
Durante 15 anos navegou pelas águas doces e salgadas de todo o Brasil, percorreu quatro continentes, aprendeu técnicas e ofícios, foi instrutor de marujos iniciantes, encharcou-se das paisagens exuberantes, das realidades sociais e suas contradições, conheceu personagens e episódios políticos importantes – até ser expulso da corporação, por causa da rebelião de que participou com destaque, nas águas da Guanabara, defendendo a dignidade da condição humana.
João Cândido não corresponde ao estereótipo construído sobre sua imagem de um homem sem instrução. Ele foi, sim, instruído e instrutor. Frequentou a Escola de Aprendizes de Marinheiros em Porto Alegre, em 1895.
Depois, já engajado, esteve lotado na mesma Escola em Recife, durante quatro meses em 1903, como instrutor. Além disso, exerceu as funções de artilheiro, maquinista, faroleiro, sinaleiro, gajeiro e timoneiro em diferentes navios. Dominava saberes complexos.
Lotado na Divisão de Instrução do navio-escola Benjamin Constant, participou de atividades variadas, como artilharia, torpedo, evolução, tiro ao alvo, bloqueio de portos, levantamento hidrográfico e reconhecimento de portos.
O marinheiro gaúcho serviu como instrutor na Divisão Naval de Instrução do navio-escola Primeiro de Março, quando ensinou exercícios militares para aspirantes da Escola Naval, em agosto de 1908. O que não lhe faltou foi instrução.
Ao explicar as origens da Revolta da Chibata, o próprio João Cândido, em depoimento no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, fez uma síntese do aprendizado das viagens e experiências daquela geração de marujos brasileiros: “A revolta nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a má alimentação da Marinha e acabar definitivamente com a chibata. E o caso era esse. Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibatado por outro homem”.
O movimento tomava corpo havia dois anos. Os marinheiros se rebelavam principalmente contra os castigos físicos que a Marinha aplicava em seus homens. Seu estopim foi em 21 de novembro de 1910, com a sessão de chibatadas que o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes recebeu.
Cerca de 2.300 marinheiros, entre os dias 22 e 27 de novembro daquele ano, tomaram os mais possantes navios de guerra e, apontando os canhões sobre o Rio de Janeiro (capital do Brasil da época), ameaçavam bombardear a cidade. A revolta trouxe para a cena pública setores oprimidos da população no papel de agentes históricos transformadores.
A rebelião revelou rostos, nomes, falas e gestos de homens até então anônimos, com destaque para a figura do negro João Cândido. Foi uma revolta multiétnica, com expressiva presença da população negra, e de caráter político.
Compuseram a Revolta da Chibata os encouraçados Minas Gerais, São Paulo e o cruzador-ligeiro Bahia (recém-construídos na Inglaterra) e o antigo encouraçado Deodoro. Dessas embarcações ouviam-se gritos de “Viva a liberdade!” e “Abaixo a chibata!” A tripulação do cruzador República abandonou-o e se distribuiu entre os navios rebelados. Os marujos do cruzador-torpedeiro Timbira também se insurgiram e expulsaram os oficiais, mas a embarcação não acompanhou os movimentos dos demais navios em rebelião.
Os marujos enviaram um manifesto e diversos telegramas ao governo com suas reivindicações. Na declaração – manuscrita em bela caligrafia – apresentavam-se como “cidadãos brasileiros e republicanos” e exigiam: “Desapareça a chibata”. Caso não fossem atendidos, estavam dispostos a bombardear a capital do país e as embarcações que os hostilizassem. Pediam, também, anistia. O governo do marechal Hermes da Fonseca, empossado havia uma semana, e o Congresso Nacional, acuados, aceitaram todas as condições.
O capitão da Marinha e então deputado federal José Carlos de Carvalho, a pedido do senador Pinheiro Machado (figura política dominante no Brasil, líder do recém-criado Partido Republicano Conservador), serviu como intermediário e negociador.
O emissário do governo, ao perguntar aos tripulantes do encouraçado São Paulo quem era o responsável pela revolta, ouviu a resposta: “Todos”. Acertadas as condições de parte a parte, o capitão Pereira Leite, à frente de outros oficiais, foi enviado para assumir o comando dos navios, em 27 de novembro.
João Cândido e os demais marujos receberam o oficial batendo continência. As bandeiras vermelhas da insurreição foram retiradas dos mastros. A chibata estava oficialmente abolida da Marinha de Guerra brasileira.
A explosão revolucionária teve como saldo cinco oficiais mortos (quatro combatendo e um suicídio), muitos marinheiros feridos (alguns defendendo os oficiais, outros do lado da revolta) e, pelo menos, dois mortos.
Tiros de advertência dados pelos rebelados mataram acidentalmente duas crianças no Morro do Castelo, destruíram casas comerciais e atingiram as dependências do Mosteiro de São Bento. Os oficiais mortos foram o capitão-tenente José Cláudio da Silva Junior, o capitão de mar e guerra João Batista das Neves, e os primeiros-tenentes Mario Lahmayer, Mario Alves de Souza e Américo Sales de Carvalho. Este, acuado pelos revoltosos, se matou.
Ao desembarcar do encouraçado Minas Gerais, no Arsenal da Marinha, João Cândido foi cercado por dezenas de fuzileiros armados e imediatamente preso. Detido no Quartel Central do Exército, incomunicável, passou por interrogatórios duros e afrontosos, até então sem tortura física.
No dia 24 de dezembro, foi conduzido à Ilha das Cobras, no litoral fluminense. Sob pretexto de que todas as cadeias da cidade estavam lotadas, foi levado a uma cela solitária, encravada na rocha úmida, lúgubre e apertada. Apesar da denominação do local – solitária –, foram depois ali depositados mais 17 marujos. Na “solitária” ao lado ficaram outros 13 marinheiros. Ao todo, 31 detidos, nus, num espaço feito para duas pessoas. Eram os considerados “elementos perigosos”, no linguajar dos oficiais.
O comandante do Batalhão Naval, capitão de fragata Francisco José Marques da Rocha, levou as chaves das celas com ele ao se retirar da guarnição à noite. Na madrugada de 25, ouviram-se gritos de desespero dos encarcerados, debaixo de um “calor sufocante”. Durante o dia, o carcereiro jogou cal sobre os detentos, para “higienizar” o local.
No dia 26, oficiais abriram a porta da cela e perguntaram se João Cândido vivia. O marujo gaúcho, com o rosto colado numa fresta da porta, ainda respirava, e cadáveres se amontoavam ao seu lado, inchados, envoltos em fezes e urina. Somente no dia 27, quando a notícia da violência começou a vazar, o capitão Marques da Rocha mandou retirar os detidos, que estavam desde o dia 24 sem qualquer alimento ou água.
Na cela de João Cândido, ele e o também gaúcho João Avelino Lira, 26 anos, apelidado de Pau da Lira, saíram inanimados, porém vivos. Nos sobreviventes das duas celas jogou-se ácido fênico, como forma de desinfecção. A pele de alguns se soltava do corpo. Ficaram ainda mais uma noite jogados no chão, nus e “ao dispor das moscas”, como lembrou João Cândido, acrescentando: “Era assim que se morria. Eu vi”.
Anistiados, os marinheiros devolveram os navios e largaram as armas em 27 de novembro de 1910. No dia seguinte, o marechal Hermes da Fonseca driblaria a anistia e assinaria o decreto 8 400, que permitia a exclusão da Armada de todos os marujos cuja presença fosse julgada inconveniente por seus superiores.
Discretamente, começava a se armar a teia que desaguaria numa repressão em massa, intensa e arbitrária. O saldo da repressão resultaria em 1 216 expulsões da Marinha, número equivalente a quase metade dos participantes da Revolta da Chibata; centenas de prisões, inclusive dos líderes do movimento; degredo e trabalho escravo para centenas dos rebelados. E ainda um número não contabilizado de assassinatos, poucos dos quais se conhecem os nomes e como foram mortos.
O marinheiro de primeira classe João Cândido, da 16ª Companhia da Marinha nacional, foi o principal líder da Revolta da Chibata, seja pela atividade que exerceu durante a rebelião, seja pelo reconhecimento dos companheiros de Armada que o aclamaram líder. Também oficiais, governo, parlamentares, imprensa e a população em geral assim o consideravam, ainda na época do episódio.
Em cinco dias o marujo gaúcho transformou-se de ilustre desconhecido na maior celebridade do Brasil daquele momento, atraindo sobre ele entusiasmo e admiração, mas também ódios implacáveis, vinganças e difamações que o acompanhariam por toda a vida. Atesta isso a quantidade de fotos, charges e artigos publicados em destaque nos principais jornais, os discursos na Câmara Federal e no Senado, diálogos registrados nas ruas, casas e cafés. “Depois da revolta da esquadra, João Cândido tornou-se a conversa de todas as rodas”, registrava o jornal Correio da Manhã.
O papel de João Cândido como “dono do Brasil” durante aqueles dias foi proclamado, entre outros, pelo escritor e jornalista Gilberto Amado com um artigo em O País, na edição de 27 de novembro, quando ainda os marujos não tinham devolvido os navios, chamando-o de almirante, árbitro da nação, marinheiro formidável, herói e homem que “violentou a História”, concebendo que os navios por ele comandados faziam “parnasianismos de manobras”.
Surgia assim, no calor dos acontecimentos, o apelido mais recorrente do marujo, que na Gazeta de Notícias, em 1912, era tratado de Almirante Negro pelo escritor João do Rio. Da mesma forma, o jovem Oswald de Andrade registrou o episódio como “a primeira revolução política que o Brasil teve nesse século – a do marinheiro João Cândido”, a quem o futuro modernista em seu livro de memórias, Um Homem sem Profissão, o chama de Almirante Negro. Ele era o primeiro almirante negro da Marinha brasileira.
Depois de deixar a Marinha, João Cândido viveu por quatro décadas como pescador artesanal, na mesma condição de milhões de trabalhadores pobres: lutando com dificuldade e criatividade para ganhar o sustento, sentindo na carne a “chibata” da negação dos direitos humanos básicos.
Embora ele e seus companheiros de revolta tenham sido anistiados em 1910, o governo desrespeitou a anistia concedida. Quase um século depois, em 2008, receberam perdão póstumo, no qual o governo federal reconhecia os valores de dignidade e justiça por que os rebeldes lutaram. Ainda assim, essa nova anistia é parcial, ficando de fora as promoções e indenizações a que os descendentes teriam direito
João Cândido Felisberto faleceu em 8 de novembro de 1969, no hospital público Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Viveu seus últimos anos num casebre na Baixada Fluminense, numa rua sem saneamento básico nem luz elétrica. Seu enterro, em plena ditadura militar, ocorreu sob forte temporal e cercado de policiais à paisana.
*As informações são da revista Aventuras na História.