Para ela, cortar cabelo é um ato político e uma forma de oferecer reconhecimento. “Quero mostrar pras pessoas que elas podem gostar dos seus cabelos do jeito que eles são.”
Por Tatiana Sabadini Do Huffpost Brasil
Kami Marques Jacoub é a 201ª entrevistada do “Todo Dia Delas”, um projeto editorial do HuffPost Brasil.
Amor próprio escrito no peito, cabelos cacheados coloridos de roxo e sorriso largo no rosto, Kami Marques Jacoub, 28 anos, é puro acolhimento e energia de quem luta pela sistema, especialmente contra padrões de beleza que as mulheres carregam. Especialista em cachos, ela corta cabelos seja ao ar livre na sombra de ipês na Universidade de Brasília (UnB), seja na sala da casa dela no Guará, no Distrito Federal, na casa dos clientes ou em algum evento da capital. Quem a procura está em busca de alguém fora da caixa, que ajude a encontrar sua beleza, seja ela qual for. Pra ela, seu trabalho é um ato político, é uma forma de ajudar o outro a se conhecer e se colocar no mundo. No caminho traçado por ela, para se reconhecer no espelho, é preciso, além de se amar, lutar por isso.
Quando estava na universidade no curso de Letras, Kami estava frustrada com o trabalho burocrático e resolveu gastar seu dinheiro em alguma coisa que gostasse. Já tinha feito um curso de maquiagem e chegou a trabalhar em alguns filmes, foi quando percebeu que queria cuidar de cabelos. “Eu pensei que seria um bom caminho porque todos os cabeleireiros que eu conhecia pareciam pessoas plenas”, brinca. Ela fez um curso em Brasília de corte e finalização que rendeu uma boa base para ela começar, mas sentiu que precisava ir além. “Como eu tenho cabelo cacheado e minha mãe tem o cabelo crespo eu vi que a técnica que eu aprendi não funcionava e fui fazer um curso específico em São Paulo, um dos poucos que tinham na época”, relembra.
Queria mostrar pras pessoas que elas podem gostar dos seus cabelos do jeito que eles são.
Para Kami, os movimentos capilares de aceitação do próprio cabelo tem ajudado muito no processo de quebra de racismos e paradigmas.
Os amigos descobriram que ela cortava cabelos cacheados e começaram a pedir cortes pra ela. “Comecei a cortar na universidade mesmo como forma até de ocupação do espaço. Meu trabalho tem um envolvimento político, normalmente lidando com corpos não necessariamente brancos, como um empoderamento capilar independente de raça. Muitas pessoas passavam a vida inteira frustradas com o próprio cabelo. O boom da auto-estima capilar com cabelos cacheados é recente, antes disso as pessoas não se relacionavam com isso de forma amorosa”.
Há quase três anos, ela corta cabelos pelo menos uma vez por semana nos banquinhos perto dos ipês, na saída do Instituto Central de Ciências na UnB. “Existe uma interação muito legal com o público, tem gente que acha que eu tô fazendo uma performance, tem gente que morre de vergonha, e aí por isso acabei fazendo atendimentos em domicílio também, muita gente passa e já marca”, conta. Ela também já cortou cabelos durante a ocupação de estudantes e em outros eventos com corte de cabelo voltado para a mulher negra, ensinou como usar o pente garfo ou como fazer low poo.
Nem todo mundo dá conta de cortar o cabelo no meio da rua, mas aconteceu de forma muito espontânea.
Pra ela, seu trabalho é um ato político, é uma forma de ajudar o outro a se conhecer e se colocar no mundo
Ela também atende na sala de estar da casa dela. Na parede o desenho de uma sereia forte, de topete, que lembra ela mesma, com estampada com as cores favoritas dela, azul, roxo e rosa. Para Kami, se olhar é importante e também faz parte do seu trabalho. Trabalhar a própria auto-estima é uma luta constante, que não termina nem mesmo quando a aceitação acontece. “Eu sempre fui uma criança e mulher gorda, tenho 1,76 de altura, sempre tive uma tendência à obesidade. Minha adolescência foi infernal, foi bem difícil não me aceitava por não ser uma mulher branca nesse corpo que socialmente não é aceito”.
Foi um processo de auto-conhecimento e empoderamento do meu corpo muito forte para me sentir bonita e sexy sendo uma mulher gorda.
Especialista em cachos, ela corta cabelos seja ao ar livre na sombra de ipês na Universidade de Brasília (UnB).
Todo dia é um aprendizado é uma sociedade inteira falando que você não tem que estar bem consigo mesma. “É um processo diário de auto-amor e conhecimento. Um dia você está mais tranquila e no outro não está. Eu não conheço nenhuma pessoa que está com a auto-estima consolidada. Eu sei que eu gosto de ser quem eu sou, mas alguns dias é mais difícil. Por que a gente dá tanto valor pro externo se quem está com a gente o tempo todo somos nós mesmos?”, indaga.
Precisamos saber quem a gente é de verdade. A beleza é um grande fator de julgamento.
Para Kami, seu trabalho é muito mais do que só cortar cabelos.
No salão na casa de Kami, as clientes se sentem como se estivessem na casa de uma amiga, o cabelo é lavado de forma improvisada na pia, mas ninguém que está ali se importa. Quem procura Kami, ainda que ela não faça propaganda ou sequer coloque uma placa na frente de casa, quer é se sentir bem na própria pele. “Muita gente me procura dizendo ‘estou marcando hora com você porque estou precisando me empoderar’. Uma das ferramentas do meu trabalho é o afeto na perspectiva de conversa, conhecer, não atender com pressa na correria do salão. Não estamos só prestando um serviço, estamos mexendo com a auto-estima da pessoa, é quase sagrado”, aponta.
“Cabelo pra mulher é uma coisa muito louca. Se terminei com o namorado, quero mudar, se emagreci quero cortar. Quando você passa por uma mudança mais drástica você quer se olhar no espelho e perceber que alguma coisa mudou mesmo”, teoriza Kami. Ela, além de especialista em cachos, também faz muitos cabelos coloridos alternativos. Pra isso, ela foi totalmente autodidata. “Meu conhecimento nesse caso foi totalmente empírico”.
As pessoas me olham e elas tem certeza que eu faço as coisas mais doidas nos cabelos e isso é bom.
Para o futuro, Kami pensa em montar o seu próprio canal no YouTube para passar conhecimentos adiante.
Para Kami, os movimentos capilares de aceitação do próprio cabelo tem ajudado muito no processo de quebra de racismos e paradigmas, de como o padrão de beleza deve ser. “Se você é uma mulher negra provavelmente terá problemas com o cabelo desde criança pra tentar controlar o volume ou vai ouvir que seu cabelo é feio ou ruim. A sociedade acaba exercendo esse papel de não reconhecimento. E a internet tem auxiliado as pessoas a se comunicarem e terem os cabelos naturais”, comenta. Ela mesma, alisou o cabelo a primeira vez quando tinha seis anos de idade, mas com 22 parou de passar qualquer química no cabelo por “uma questão política, pra ele não ser manipulado de forma negativa”.
No futuro, Kami sonha em morar em algum lugar com praia e ter uma vida mais tranquila, ter um salão onde pudesse trabalhar com outras pessoas. Além disso, planeja começar um canal no YouTube para passar seus conhecimentos adiante. “Ainda são pouco os cursos disponíveis no Brasil e a maioria são caros, então queria dividir o que eu sei, Precisamos entender que mais da metade da população brasileira não tem cabelo liso e que o cabelo crespo ou cacheado não é errado, não é ruim, não é difícil de cuidar. Tenho muita vontade de ensinar e passar esse conhecimento”.